Com baianês e ouvindo até Pablo, estrangeiros falam de vida em prisão de Salvador.

Quando ouve Pablo cantar que homem não chora, o croata Mato Pauk, 53 anos, não esconde a emoção. “Lembro da minha ex-mulher e da minha vida destruída”, admite. A francesa Sonia Chajri, 24, não consegue nem escolher uma canção preferida no repertório da Voz Romântica.

“Gosto de todas. Até essa nova, Miau Miau, eu curto”, revela a jovem. A sofrência do arrocha entrou na vida desses estrangeiros a partir da sofrência do cárcere. Eles foram presos por tráfico de drogas e condenados a cumprir a pena no Complexo Penitenciário da Mata Escura, uma das 22 unidades prisionais da Bahia que, ao todo, abrigam 27 gringos, segundo a Secretaria da Administração Penitenciária (Seap).

Pauk foi preso pela Polícia Federal em 2010, quando integrava uma quadrilha de refino de cocaína em Camaçari. Na época, ele fazia parte da lista vermelha da Interpol e acabou capturado com 160 kg da droga, pronta para consumo. Segundo a delegada federal Indira Croshere, o croata era o químico responsável pelo laboratório clandestino.

Para tentar provar sua inocência, ele escreve cartas, em português, que pretende entregar à presidente Dilma Rousseff e ao jornalista William Bonner. “Não sei o endereço deles, por isso ainda não pude enviar”, explica.

Com passagem por uma cadeia italiana, Pauk compara as instalações de além-mar com as daqui. “Lá é mais humano, aqui não é. Isso é perigoso, porque quando o cara perde a dignidade, sai magoado, cheio de ódio”, reflete.

O croata divide a cela no Módulo 5 da Penitenciária Lemos Brito (PLB) com um espanhol — que não quis falar com a reportagem —e um francês, além de dois brasileiros.

Facilidade

O francês é Ibrahim Ouamari, 25, que é de família marroquina. Com o desejo de ganhar dinheiro com o tráfico, ele escolheu o Brasil como destino para colocar os negócios em prática. Estudou as melhores formas de transportar cocaína e os meios mais fáceis de sair daqui com a droga. O aeroporto de Salvador foi o escolhido para o envio das remessas para a Europa. “Comprava um quilo por R$ 15 mil no Brasil e vendia por R$ 200 mil na França. Em seis meses, eu estava quase milionário”, comenta Ibrahim.

Do convívio com os traficantes que conheceu na PLB tirou uma conclusão: a forma de trabalhar é bem diferente. “Nunca apertei o gatilho de um revólver. Aqui se fala em morte o tempo todo. Por qualquer motivo já estão matando”, analisa. O franco-marroquino afirma ainda não ter feito amizade com detentos locais e diz tentar se isolar por conta da personalidade agressiva que atribui a eles. “Passo os dias assistindo TV e andando”, declara, em português fluente.

A mulher de Ibrahim, que é de Jequié, e o filho do casal moram em São Paulo. “Ela veio visitar, mas prefiro que não venha. A Salvador que conheço pelo que falam aqui dentro é horrível e violenta”.

A sensação de medo em relação à capital é compartilhada pelas francesas Sonia e Laurie Dugardin, 24, presas na mesma operação que tirou Ibrahim de circulação, em outubro de 2013 – elas eram mulas (pessoas pagas para transportar drogas pelas fronteiras) contratadas pelo compatriota.

“Pensei que ia sair na rua e morrer na hora. Tinha medo de ir comprar um cigarro e levar um tiro”, diz Laurie sobre período em que passou para o semiaberto, um ano depois de cumprir o regime fechado.

Baianês

Para as duas francesas de família marroquina, a maior dificuldade enfrentada na prisão foi o idioma. “Senti vazio e medo. Nem o nosso advogado falava francês. A gente tinha que se comunicar por gestos”, conta Sonia.

Ao longo da prisão, elas começaram a aprender as primeiras palavras em português. “Primeiro ensinaram os palavrões, depois o resto”, diz Laurie. Como não tinham residência em Salvador para cumprir o regime semiaberto, elas moraram na casa de freiras da Pastoral Carcerária, no bairro da Mouraria.

“Lá, vimos que o que é falado do lado de fora não era como na prisão. Eu falava ‘mijar’, as freiras ensinaram a falar ‘xixi’”, ilustra Laurie.

Fluente em italiano e alemão, o croata Pauk também incorporou o baianês ao seu vocabulário. “Minha ex-mulher é de Manaus. Uma vez, em uma ligação, ela reclamou de eu estar falando ‘porra’ o tempo todo. Mas aqui é assim”, diz ele, que também aprendeu a “abrir o gás” e garante não gostar de “aperto de mente”.

Enquanto os gringos da penitenciária dizem conviver bem com os brasileiros, o mesmo não ocorre no Conjunto Penal Feminino. “As detentas daqui são xenófobas, não gostam de estrangeiras. Pegam no pé”, afirma a diretora da unidade, Luz Marina Ferreira.

A religião era um dos motivos de discórdia: Laurie e Sonia são muçulmanas, por isso não podem comer carne de porco e devem jejuar durante o Ramadã — o mês sagrado dos muçulmanos. “Elas achavam as duas privilegiadas por causa dessa dieta”, relata Luz.

O idioma também já gerou desentendimentos perigosos. A diretora conta que quando uma peruana, que já deixou a prisão, agradecia às outras em espanhol, ocorriam mal entendidos.

“Quando a moça falava ‘gracias’ ou ‘muchas gracias’, confundiam com ‘desgraça’. Elas diziam: ‘vem pro meu país pra dar esse nome ruim?’. Já era motivo de briga”, cita a diretora. A aceitação de Laurie e Sonia na prisão só melhorou quando elas passaram a trabalhar no recolhimento do lixo das celas no Conjunto Penal Feminino.

Dolce vita

Essa limpeza, segundo um agente penitenciário, só é feita por quem não tem dinheiro. O croata e o francês, segundo ele, têm uma espécie de dolce vita prisional. “Eles não comem a comida daqui. Um outro detento cozinha para eles. A faxina também é paga”, relatou, sob anonimato.

Informado da situação, o diretor da PLB, Everaldo Carvalho, diz que o pagamento para outros presos trabalharem não vai de encontro à Lei de Execução Penal. “Nos dias de visita, a família leva a alimentação para comer com seus entes. Os detentos se utilizam dessa comida. Cada um tem a obrigação de manter a cela limpa e fazem rodízio entre eles. Os que não querem fazer, pagam”, justifica.

Dificuldades

Um relatório produzido pelo Grupo de Trabalho Pessoas Estrangeiras Privadas de Liberdade, coordenado pela Ouvidoria do Sistema Penitenciário Nacional, do Ministério da Justiça, destaca uma lista de dificuldades específicas enfrentadas pelos estrangeiros presos no país. Entre os itens que compõem o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), divulgado em junho do ano passado, são considerados mais comuns: a dificuldade de obtenção de livramento condicional e de progressão de regime, dada a maior dificuldade dessas pessoas em atender às condições exigidas pela Lei de Execução Penal (como a obtenção de ocupação lícita, dentro de prazo razoável); a dificuldade em receber visitação e manter contato com a família (o que não parece ser o caso da Bahia, conforme a direção do presídio); a carência à assistência dos respectivos consulados no país; as dificuldades relacionadas à barreira linguística, como a falta de acompanhamento jurídico; e o desconhecimento das regras disciplinares e do processo de execução penal.

Ainda de acordo com o relatório, as cadeias do país abrigavam, até junho de 2014, 2.784 pessoas privadas de liberdade provenientes de outros países. No entanto, esse número pode ser bem maior, já que 60% das unidades disseram não dispor de registros sobre a nacionalidade dos detentos – em Sergipe, no Ceará e em Pernambuco, por exemplo, mais de 80% das unidades disseram não ter condição de levantar essa informação.

A ausência do preenchimento dos formulários por parte das unidades de São Paulo, estado com mais da metade dos presos estrangeiros (1.796, no total), também prejudica a análise da situação. Na Bahia, segundo o Infopen – que só começou a contabilizar os detentos de outras nacionalidades em 2009 -, eram 27 estrangeiros nas 22 unidades prisionais do estado, até 2104. Isso equivale a 0,3% do número de presidiários no estado, que conta com 15.399 pessoas custodiadas.

Após a pena, a expulsão

Quando um estrangeiro entra legalmente no Brasil e comete um crime, após cumprir sua pena ele sofre um processo de expulsão do país. Essa medida pode ser tomada diretamente pela Presidência da República ou delegada, por ela, ao Ministério da Justiça.

“Quando terminam de cumprir a pena, eles devem ser expulsos. Porém, algumas situações impedem esse processo, como ser casado e ter filho anterior à prisão”, esclarece a coordenadora estadual de execução penal da Defensoria Pública do Estado (DPE), Fabíola Pacheco.

Pai de dois filhos brasileiros de 10 anos, o croata Mato Pauk, 53, pretende permanecer no Brasil após o término da sua pena. “Sempre trabalhei com turismo. Quero abrir uma agência e trazer europeus para cá. Salvador tem muito potencial”, afirmou Pauk, empolgado com os planos fora da PLB.

A extradição, explica a representante da DPE, é o processo que pede ao Brasil para entregar um indivíduo a outro país para que lá seja processado e julgado pelo crime cometido. O pedido é feito por via diplomática, de governo para governo, e o Supremo Tribunal Federal (STF) é a autoridade competente a se pronunciar sobre o pedido. Em regra, é concedida a extradição de cidadão do país requisitante.

O Brasil, normalmente, não aceita extraditar brasileiros natos e indivíduos que cometeram crimes no país. O governo francês, por exemplo, entrou com um pedido de extradição de Ibrahim Ouamari, 25. Lá, ele cumpriria uma pena de sete anos também por tráfico de drogas. O pedido foi negado pelo governo brasileiro.

“Quando se comete um crime, o estado entende que a pessoa deve ser punida. Não existe a mesma garantia de cumprimento da pena em outro país. Se um estrangeiro comete um crime no Brasil, ele deve cumprir a pena aqui”, explica o juiz auxiliar da Corregedoria-Geral de Justiça da Bahia, Moacyr Pitta Lima.

Luana Amaral

(Correio – 11/08/2015)