A vida como refugiado é difícil, mas a vida na guerra é ainda pior.
Era uma ação de cunho social. A faculdade contatou ONGs que acolhem refugiados e organizou um dia pleno em atividades de inclusão, acolhimento e compartilhamento de experiências. Refugiados da Síria, da Bolívia e de países africanos chegaram por volta das dez da manhã e foram recebidos com farto e nutritivo desjejum: leite, pão, café, bolo, suco, torrada, geleia, iogurte, frutas. Enquanto comíamos, adaptávamo-nos. Eles conosco, nós com eles. Falávamos português, inglês, francês, espanhol e, por vezes, era requerida a presença de um tradutor.
Durante as conversas, as primeiras constatações: a vida como refugiado é difícil, mas a vida na guerra é ainda pior; o Brasil é um país acolhedor; as crianças aprendem o idioma muito mais rápido do que os adultos. Entre um achocolatado e outro, as constatações menos superficiais: viver como refugiado não é apenas difícil, é terrível; o Brasil é acolhedor, mas os acolhimentos são distintos; as crianças aprendem tudo mais rápido do que os adultos. Findo o café da manhã, as constatações mais profundas: ser refugiado é quase não-ser; os refugiados africanos sofrem preconceito duplo no Brasil, por serem refugiados e por serem negros; as crianças, em alguma medida, percebem que são discriminadas e desenvolvem mecanismos para não sofrer ainda mais por isso. Molecada esperta.
Os refugiados sírios contam que são acolhidos por famílias de sírios residentes no Brasil; os bolivianos contam que, por ser uma prática mais antiga e frequente, a embaixada já tem procedimentos de acolhida bem desenvolvidos; os africanos contam que estão morando em abrigos públicos, homens separados de suas mulheres e filhos, distantes uns dos outros. Além disso, como há muitos mendigos, moradores de rua, imigrantes do próprio Brasil, a concorrência por um lugar de pernoite no abrigo é acirrada, portanto, é preciso chegar aos locais antes das oito horas da noite, ficar na fila, entrar, comer, adormecer. Raso convívio social, pouca adaptação, quase nenhum aculturamento. Em suma, os refugiados africanos, discriminados (inclusive por serem negros) num País cuja maioria da população é da raça negra, não têm privacidade, não têm proximidade, não têm perspectiva, não têm vida, não têm nada. Quase nada.
Bem, a conclusão era evidente: chega de prosa, vamos dar a essa gente um pouco de alegria. Música! Era a hora de chamar à cena a bateria da faculdade. Similar à bateria de uma escola de samba, os estudantes tocam e tocam muito bem. O samba daria àquela gente uma sensação de proximidade com suas raízes, com sua terra, com sua cultura, consigo mesmos.
A bateria vem tocando. Os tambores soam como as batidas dos corações de brancos e negros. Os refugiados se encantam imediatamente. Os olhos tristes se enchem de vida, os sorrisos brotam involuntariamente nas faces, a conversa soturna fica de lado. Ali, naquele momento, só o som dos tambores. Nada como a música, o samba, para aproximar os africanos deles mesmos, de suas memórias, de uma réstia de vida. Os africanos, finalmente, hão de se sentir em casa.
No entanto… as africanas não dançavam. Remexiam as bolsas, procuravam algo… sacavam das sacolas… seus smartphones. Uma após a outra, elas ligavam o aparelhinho e, em lugar de sambar, filmavam a bateria. Uma após a outra, uma após a outra, até que todas – e não é força de expressão –, todas elas empunhavam, filmavam a bateria e gravavam a música com seus aparelhos.
Era impossível não pensar: “Caramba! Essa gente não tem nada; como é que eles têm esses aparelhos que são caros à beça? E mais: na hora em que a música pode conectá-los uns aos outros, às suas memórias, a si mesmos, eles pegam essa porcaria? Para quê?”.
A bateria tocou, foi-se embora, os refugiados ficaram para as demais atividades programadas para o dia. Os africanos juntavam-se em duplas, trios, olhavam para seus aparelhos, conversavam, sorriam uns para os outros. Fui a um desses grupos. Fiz a pergunta: “Para que vocês pegaram essas porcarias em suas bolsas?”. Para publicar nas redes sociais. “Pra quê?” Para os outros verem. “Que outros? Verem o quê?”. Publicados nas redes sociais, eles sentem-se pertencendo ao mundo; são reconhecidos e, por conseguinte, reconhecem-se; eles existem. “Esse aparelho é usado para se comunicar com a embaixada, com entidades assistenciais, com ONGs de acolhimento e proteção?” Também. “Mas este é o principal uso dado a esse aparato tecnológico?” Não. Conectados, cada um deles reconhece a sua própria identidade; consideram-se seres humanos, são gente. Sentem-se inseridos na vida-real justamente porque fazem parte do mundo virtual.
O mundo está de cabeça para baixo.
Kleber Mazziero
(Comércio do Jahu – 22/12/2015)