Haitianos, congoleses, peruanos, angolanos e cubanos estão trazendo na bagagem novas informações musicais para o Brasil.
Quando chegam a São Paulo, imigrantes e refugiados costumam percorrer quatro etapas. Primeiro, procuram um lugar para dormir. Depois, se apressam em regularizar sua situação, providenciando a documentação necessária, o que lhes permite então ir atrás de emprego. Uma vez que alcançam um mínimo de estabilidade, é chegada a hora da música.
A ordem pode não ser exatamente essa, ainda mais considerando a diversidade da população estrangeira no Brasil (formada por 194 nacionalidades), mas trata-se de um padrão observado muitas vezes pelo padre Paolo Parise, italiano com 17 anos de Brasil, cinco deles à frente da Missão Paz, que reúne no centro de São Paulo a Casa do Migrante e a Pastoral dos Migrantes, locais de passagem comuns entre os recém-chegados, principalmente do Haiti, Bolívia, Peru e Congo (RDC).
“A música surge de forma quase natural entre eles. É uma forma de manter o vínculo com seu país de origem”, diz Parise, lembrando que muitos grupos surgiram na própria Casa, que conta com estrutura para a realização de ensaios e festas típicas.
“Para um imigrante, oferecer seu som pátrio ao público é mostrar o melhor de si e dos seus e ser acolhido pelos ouvintes, em atenção e aplausos”, diz Marília Franco, pesquisadora e atual diretora do centro de estudos latinos do Memorial da América Latina (CBEAL).
Além da usualmente citada força de trabalho, essa nova fatia de habitantes em território brasileiro traz na mala ritmos próprios pouco conhecidos por aqui. O Nexo conversou com cinco desses artistas imigrantes de São Paulo para ouvir mais sobre suas músicas.
NIGÉRIA – Uchen Henry
Com apenas 22 anos, Uchen Henry engrossa hoje a lista de refugiados no Brasil. Abandonou a cidade de Lagos, capital da Nigéria, onde nasceu, após ter sua vida ameaçada. Seu irmão Edmond, que atuava como seu empresário, não teve a mesma sorte. Foi morto dias antes por conta de um desentendimento com um político da cidade para quem trabalhava vendendo peixe. Uchen era o próximo. Após ser alertado, entrou escondido em um navio no porto próximo à sua casa, sem saber o destino. Foram 14 dias à base de pão, água e alguma comida surrupiada da cozinha da embarcação.
“Quando vi, estava em Santos. Identifiquei que era o Brasil pela bandeira”, diz em um português que surpreende pela clareza. Uchen passou dois anos trabalhando em restaurantes e lavando carros.
Hoje, investe em sua música. Na internet, é possível encontrar faixas de composições suas, como “Uchen Chegou” (veja letra abaixo), “Who Have a Thought”, “Eu Amo Meu Amor” e “Know My Name”, com letras que alternam português, inglês, iorubá e pidgin english (mistura local de inglês e iorubá).
O cantor nigeriano também gravou um videoclipe com apoio da ONU, chamado “Somos Um”, com a participação de músicos estrangeiros no Brasil. A música do clipe fala da condição de refugiados, bandeira que se tornou o principal tema do cantor.
Seu estilo musical é o afrobeats, gênero que faz referência ao afrobeat popularizado pelo nigeriano Fela Kuti nos anos 70, mas com elementos do pop americano – o cantor Akon é um dos grandes ídolos por lá. Artistas como D’Banj (‘Oliver Twist’), 2Face Idiba (‘African Queen’), WizKid (‘Jaiye Jaiye’, com Femi Kuti, filho de Fela), PSquare e o produtor Don Jazzy (‘Collabo’) tornaram o estilo conhecido internacionalmente e são as maiores influências de Uchen.
Uchen Chegou
(Uchen)
Uchen chegou, Brasil
Vou deixar pra lá
Vou deixar tudo passar
Vou me concentrar
Vou tentar voar
Pensar na paz
Tentar viver em paz
Deixar para trás
Tudo que passou, não pode mais
I’m here to stay (Estou aqui para ficar)
PERU – Fina Estampa
Sempre que vinha do Peru ao Brasil a negócios, o empresário e jornalista Oscar Vasques Soliz se espantava com a presença inexpressiva da cultura peruana por aqui. Em 2010, foi convidado por uma empresa de ônibus de seu país a cuidar do novo escritório em São Paulo. Além da família, trouxe a vontade de promover entre os brasileiros seu país, sua música, culinária e idioma. Em parceria com o consulado peruano, criou o festival anual Expo Ceviche, atualmente em sua terceira edição.
A movimentação contribuiu para reunir imigrantes peruanos no Brasil. Dessa aproximação, brotou um grupo de música chamado “Fina Estampa”, nome de um hit peruano de autoria da compositora e cantora Chabuca Granda. Ícone da chamada música criolla, Chabuca é a “Vinicius de Morais do Peru”, segundo Oscar.
“Nossa música é negra e alegre, nada a ver com a folclórica que turista vê em Machu Picchu.” O grupo – formado por percussão, cajón, sax, violão, vocal e dança – toca clássicos criollos peruanos e canções autorais (como uma dedicada à cidade peruana de Pisco, atingida por um terremoto em 2007, cuja letra você pode conferir abaixo). Suas aparições públicas, no entanto, se resumem às festas da comunidade peruana pelo Brasil.
“O mito de que brasileiro não gostava da música e comida peruana morreu. O problema era a promoção da nossa cultura, e entender isso mudou tudo”, comemora.
Porto de Pisco
(Oscar Vasques Soliz – tradução do espanhol)
No inverno de minha vida eu acho que me lembro
Aquele povoado que aparece na névoa
De noites claras e branca espuma
De belas ilhas e alva lua
Porto de Pisco, luz e esperança onde ancora prisioneiro
O barco das minhas andanças
Se suas praias estranho é porque tenho que partir
Mas levo dentro da minha alma seu eterno sabor de mar
Entardeceres de mil cores foram testemunhas dos meus amores
Hoje a dor e a angústia invadem todo o meu ser
Quero voltar como o sol para te ver renascer
ANGOLA E CONGO – Os Escolhidos
“Nossas músicas falam das boas maneiras para o convívio social”, explica o congolês Leonardo Mabiala, vocalista do grupo Os Escolhidos, formado por outros cinco amigos do seu país de origem e da vizinha Angola – por onde Mabiala passou com seus pais, fugindo de conflitos na República Democrática do Congo antes de finalmente partirem para o Brasil, há três anos.
Cantadas em lingala, idioma falado no Congo e e em partes de Angola, as canções do grupo não economizam em referências religiosas. Na canção autoral ‘Bolingo na yaweh’ (Amor de Deus, em português), a letra diz: “Roubar não é bom / Invejar não é bom (…) O amor de Deus não nos permite fazer isso”.
A música d’Os Escolhidos possui influências da rumba congolesa, mas tem ritmo menos acelerado. Trata-se de um gênero novo chamado aguaya, explica Mabiala. A agenda da banda é composta principalmente de eventos na igreja K.C.C (Boa Nova Mensagem) de origem africana, que reúne parte da comunidade de imigrantes e refugiados angoleses e congoleses no bairro de Artur Alvim, na zona leste paulistana.
O plano, no entanto, é assumir rumos diferentes da instituição cristã. “A gente decidiu fazer uma carreira separada da igreja, mas sempre com a mesma linhagem. Nosso objetivo é educar a comunidade para que evitem de fazer coisas ruins”, diz Mabiala.
Abaixo, a letra de “Prepara-te”, uma das canções autorais que exemplificam as intenções educativas do grupo:
Prepara-te
(Leonardo Mabiala – traduzido do lingala)
Prepara-te porque amanhã não sabemos o que vai acontecer
Não adianta ter orgulho dos bens materiais que você tem
Enquanto puderes ajude o outro
Enquanto puderes não deixe alguém sofrer na sua frente
Prepara-te porque amanhã não sabemos
CUBA – Fernando Ferrer
Um país latino que não conhece música latina. Era o que o cubano Fernardo Ferrer ouvia sobre o Brasil. Nos idos de 1997, ele embarcou para cá e atestou com os próprios olhos (e ouvidos) o rumor. A viagem desencadeou outras e Ferrer passou a visitar o Brasil com frequência. Todas motivadas por seu trabalho, diz ele. “Música é minha vida”, diz o cantor e instrumentista de 53 anos e profissional dedicado a sua arte há 30.
Nascido no interior da ilha, em Santiago de Cuba, o músico conhecido pelo apelido “El Jíbaro” — algo como ‘o caipira’ — vive desde 2005 em São Paulo, onde se apresenta com sua banda (formada por brasileiros e cubanos imigrantes que conheceu aqui) em casas de jazz conceituadas, como Bourbon Street e Jazz nos Fundos.
Sua música é fundamentada no gênero mais tradicional cubano, conhecido como ‘son montuno’, baseado em ritmos caribenhos, como salsa, bolero, merengue, bachata e cha cha cha. Mas também se mistura a ritmos brasileiros, como samba e baião. “Queria demonstrar que as músicas cubana e brasileira têm as mesmas raízes.”
Seu repertório mescla músicas autorais e latinas mais facilmente reconhecíveis por brasileiros. “’Guantanamera’ tem sempre, e também coisas do Buena Vista Social Club, como Chan Chan (veja a letra abaixo). Mas tem muita mais. Cuba é uma fábrica escandalosa de música. Se você deixa de ir para lá um ou dois anos, a cena musical já é outra.”
Ferrer conta que, como consequência do seu trabalho de divulgação da música latina no Brasil, uma comunidade de imigrantes se formou em torno de sua banda, principalmente chilenos, argentinos, peruanos e venezuelanos. Apesar disso, para sua surpresa, seu grande público é mesmo o brasileiro. “Aqui se gosta muito de salsa e música latina. Ainda assim, existe uma barreira que não se explica. Não conseguimos divulgar nosso trabalho, são raros os empresários que apostam em bandas latinas. Qualquer coisa que faço, tenho que tirar do bolso.”
Chan Chan
(Buena Vista Social Club – traduzido do espanhol)
De Alto Cedro vou para Macané
Chego a Cueto vou para Mayarí
O amor que tenho por você
Eu não posso negar
Se babo por você
Isso eu não posso evitar
Quando Juanica e Chan Chan
No mar peneiravam areia
Como balançava a peneira
De Chan Chan dava pena
Limpe a palhada do caminho
Que eu quero me sentar
Naquele tronco que vejo
E assim não consigo chegar
Do Alto Cedro vou para Macané
Chego a Puerto vou para Mayarí
HAITI – Satellite Musique
A banda impressiona pelo tamanho: entre guitarra, bateria, baixo, vocais, congas, teclado, sopros, percussão e “apoio”, chega a 12 membros. Todos do Haiti. O ritmo também vem de lá. Chamado compas (ou kompa), o estilo tradicional do Haiti tem elementos de zouk, rumba congolesa e reggae. “O Brasil tem o samba, nós temos o compas”, explica o líder do grupo Satellite Musique, Louis Charles.
Os músicos se conheceram em redutos da comunidade haitiana de São Paulo, como as ruas do Glicério e a Casa do Migrante, mantida pela Arquidiocese de São Paulo. Atualmente, os haitianos são maioria por lá. O espaço conta com salas para ensaios e apresentações e até instrumentos.
“A banda começou lá. Eu só tinha o meu teclado, não tinha outros instrumentos”, lembra Charles. No mesmo local, tocaram em festas comemorativas do seu país de origem, como o 1º de janeiro, que celebra, além do ano novo, a independência haitiana. Consideram-se a primeira banda de música tradicional haitiana no Brasil, se tornando uma referência para haitianos espalhados por todo o país. “Eles todos nos conhecem. Haitianos de Santa Catarina, Mato Grosso, Rio de Janeiro… comentam e curtem tudo o que a gente faz.”
A música, até agora, não trouxe dinheiro. O grupo fez apresentações na ocupação do Hotel Cambridge e na Praça da Sé, no centro de São Paulo, e até viajou para festivais em Campinas (SP) e Rio de Janeiro. Em alguns casos, os músicos arcaram com os custos de aluguel de instrumento e transporte. Um desafio, já que parte do grupo, que trabalhava em construção civil, está desempregada há meses. Os ensaios, por exemplo, feitos em um pequeno estúdio na República, são esporádicos pois só acontecem quando um deles tem algum dinheiro sobrando.
O grupo, que ainda não possui músicas autorais, leva em seu repertório interpretações de clássicos e hits modernos de compas. Entre seus favoritos, estão o precursor Nemours Jean-Baptiste e os atuais Nu Look, T-Vice, Sweet Micky (nome artístico de Michel Martelly, atual presidente do Haiti), Kassav e Carimi e Zenglen (autores de “Sexy love”, parte do repertório do Satellite).
Sexy Love
(Zenglen – traduzido do inglês e creole haitiano)
Querida, diga que você acredita em mim
Por favor, nunca vá embora
Minha doce querida, vem pra mim
Não fuja, o amor pode ser um paraíso
Mesmo que não estamos nus
Qualquer coisa que aconteça
Eu vou deixar você fazer
A terra pode tremer
Furacões e trovões
Eu vou deixar você fazer
Minha vida sente falta da sua
Porque você não está por perto
Uma saudade grande, desde que você me deixou
Murilo Roncolato
(Nexo – 24/11/2015)