A regra é não ler o projeto e disseminar o discurso de ódio, de preferência enrolado na bandeira nacional, em homenagem à tradição discriminatória de nossas leis.

Difícil alguém se auto-intitular nipo-brasileiro, ítalo-brasileiro, teuto-brasileiro, luso-brasileiro, líbano-brasileiro, sino-brasileiro, mas são vistos como portuga, japa, turco, gringo, bugre, galego e outras variações, como os termos racistas atribuídos ao negro. E não estamos falando só de imigrantes, mas de descendentes de estrangeiros há uma ou muitas gerações.

E não só as pessoas são xenófobas. A lei brasileira sempre foi também. A história da lei migratória no Brasil nunca escondeu a xenofobia do povo de sangue imigrante em relação aos estrangeiros do momento. Nos últimos dois séculos, normas foram promulgadas para não aceitar pessoas da África e da Ásia ou ciganos, e preferir os de ascendência europeia, em nome do branqueamento da população, desde que os brancos que cheguem não sejam pessoas com deficiência de qualquer sorte. Inicialmente, o imigrante ideal seria um branco para substituir escravos negros, mas a seguir em trabalhos servis. Igualmente, vistos como ameaça à segurança, foram desenhadas facilidades para expulsar estrangeiros por vagos motivos, como o de terem eles de qualquer forma atentado à tranquilidade ou moralidade pública, ou cujo procedimento os tornem nocivos à conveniência nacional. Essas últimas razões estão no Estatuto do Estrangeiro, a ser revogado, que, associado ao Código Penal, ainda reserva esforços para atribuir penas ao fenômeno migratório.

Como breve exemplo de nosso racismo, já na República, o Decreto nº 528, de 28 de junho de 1890, subscrito pelo Generalíssimo Manoel Deodoro da Fonseca, proibia a vinda de imigrantes africanos e asiáticos (com as posteriores exceções aos chineses e aos japoneses). Ocorre que o mito de que o Brasil era uma democracia racial fez com que um grupo de cidadãos negros dos Estados Unidos organizassem uma migração ao Brasil na década de 1920, estimulados em especial pelo militante de direitos civis W. E. B. Du Bois, em seu jornal, o “Crisis”, e pela BACS (Brazilian American Colonization Syndicate), uma organização de Chicago. Não imaginavam as autoridades racistas brasileiras que um fluxo de negros poderia surgir de outro continente que não a África. Prontamente, o Itamaraty começou a recusar vistos a essas pessoas e teses começam a ser traçadas para resolver o embaraço diplomático e manter a política brasileira de branqueamento. E assim foi feito.

Ao contrário dos precedentes, nasceu do Poder Legislativo, de autoria do senador Aloysio Nunes, atual chanceler, um projeto de lei para romper esse histórico xenofobismo legislativo. O percurso do PLS (Projeto de Lei do Senado) 288, de 2013, com 125 artigos, iniciado com perspectiva humanista, não discriminatória nem criminalizante, foi enriquecido por intenso diálogo suprapartidário e com entidades da sociedade civil, empresas, órgãos de segurança, diferentes setores da administração pública, Ministério Público, Defensoria Pública, acadêmicos. Além de aproveitar boas práticas administrativas e a jurisprudência produzidas após a Constituição Federal de 1988. Já aprovado em primeira instância em ambas as Casas Legislativas, retorna da Câmara ao Senado Federal em forma de Substitutivo (o SCD nº 7, de 2016). Aperfeiçoando suas características, esse substitutivo é novamente aprovado na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado com algumas emendas trazidas pelo relator, senador Tasso Jereissati. Agora resta a votação final no plenário do Senado.

Assim, sempre respeitando os limites constitucionais, direitos são assegurados; grupos antes ignorados são lembrados, como os residentes fronteiriços, os indígenas e as crianças imigrantes; os vistos são modernizados, admitindo novas modalidades, como o de acolhida humanitária, e desburocratizando o mundo dos negócios, dos investimentos e do trabalho, sem descuidar de eventual política de reciprocidade; a residência de estrangeiro passa a ser gerida internamente, extinguindo o visto permanente; requisitos objetivos são erigidos para a naturalização; três medidas compulsórias de retirada de estrangeiro (a repatriação, a deportação e a expulsão) são definidas de modo a equilibrar os valores da segurança pública, do devido processo e da reunião familiar; a extradição, a transferência internacional de pessoas condenadas e a transferência da execução da pena são consideradas sem limitar evoluções trazidas por tratados ratificados; e o único tipo penal previsto é para reprimir os chamados “coiotes”, pessoas que buscam lucro com a migração sem limites.

Há três vezes mais brasileiros no exterior do que estrangeiros no Brasil

Quem é contrário hoje ao relatório do senador Tasso Jereissati ao Substitutivo da Câmara dos Deputados nº 7, de 2016, em votação no plenário do Senado Federal? Esses que comentam na redes sociais seriam os novos xenófobos? Leiam as leis de 1890, de 1938, de 1945, de 1969, de 1980. Venceram lá. Quais os motivos? A seu tempo foram escravistas, fascistas, nazistas ou autoritários. E agora? Trump, Le Pen, Geert Wilders, muros, terrorismo…

Nessa esteira, a regra é não ler o projeto e disseminar o discurso de ódio, de preferência enrolado na bandeira nacional, em homenagem à tradição discriminatória de nossas leis. Há um só parágrafo sobre indígenas, que garante a mobilidade dessas pessoas dentro de suas terras tradicionais. Até o rigor de Estados Unidos e Canadá garantem esse trânsito fronteiriço em áreas indígenas, inclusive garantindo o direito de caça de animais. Mas é suficiente para argumentarem com desfaçatez que haverá uma invasão indígena. Igualmente argumentam que tal invasão se dará porque não repatriaremos crianças desacompanhadas. Querem que devolvamos à transportadora uma criança que chega desacompanhada no aeroporto, porto ou posto de fronteira? O mesmo poderia se dizer ao taxarem imigrantes como potencialmente traficantes e terroristas. Chega a ser uma piada de mau gosto uma sociedade com altos índices de violência como a brasileira, da qual somente 0,5% são estrangeiros, atribuir a estes alguma responsabilidade quanto ao tema segurança pública.

Além disso, quem ler atentamente o projeto, notará que não é crime imigrar, mas será impedido de entrar no país quem está sendo procurado pela Interpol ou responda a processo por crimes como o de terrorismo. Não é crime reunir o cônjuge brasileiro com o estrangeiro, ou a mãe brasileira e o filho estrangeiro, e lhes serão garantidos a residência em nosso solo, mas modalidades penais foram criadas para punir estrangeiro não só por crimes cometidos aqui, mas também por crimes cometidos no exterior. Outros desejam que os estrangeiros residentes não tenham nenhum direito social. Ora, eles são submetidos a nossas regras e benefícios, o que inclui imposto e previdência.

Independentemente dessa lei, os tribunais brasileiros já garantem os direitos fundamentais baseados em nossa Constituição Federal e em tratados ratificados. Como manifestou-se o ministro Maurício Corrêa no STF: “A divisão dos seres humanos em raças resulta de um processo de conteúdo meramente político-social. Desse pressuposto origina-se o racismo que, por sua vez, gera a discriminação e o preconceito segregacionista. (…) Adesão do Brasil a tratados e acordos multilaterais, que energicamente repudiam quaisquer discriminações raciais, aí compreendidas as distinções entre os homens por restrições ou preferências oriundas de raça, cor, credo, descendência ou origem nacional ou étnica, inspiradas na pretensa superioridade de um povo sobre outro, de que são exemplos a xenofobia, ‘negrofobia’, ‘islamafobia’ e o antissemitismo” [HC 82.424, julgamento em 17-9-2003].

Além disso, milhões de brasileiros emigraram. Essa população atual excede a de estrangeiros no Brasil. Alguns apontam que há três vezes mais brasileiros no exterior do que estrangeiros no Brasil. Desejamos mais o exterior do que nos desejam. Pois a proposição legislativa em questão contempla os brasileiros no exterior. É outra novidade, e esta de profunda pedagogia. A humanidade se move e esta mobilidade deve ser cuidada como um fluxo de mesma ordem. “Via fora de mim o meu próprio sangue, e eu o estranhava”, poetizou a brasileira Clarice Lispector, nascida na Ucrânia. O sangue e o território são muito explorados pelo Direito, não raras vezes como justificativa para castigos sem ancoradouro no crime. Puro preconceito. A nova lei pondera as realidades de quem sai e de quem vem e opta pela proteção coletiva e pela dignidade humana.

Tarciso Dal Maso Jardim

(Nexo – 16/04/2017)