Jantar em homenagem a refugiados sírios e palestinos cai no gosto de brasileiros.
Em meio ao comércio da movimentada Avenida Professor Alfonso Bovero, no bairro da Pompeia, zona oeste de São Paulo, há uma loja especializada em discos de vinil no número 382. A luz ambiente baixa introduz ao clima do local, cujo teto é completamente coberto por reproduções em preto e branco de capas de LPs, além de muitos quadros e adesivos nas paredes, incluindo um com o já clássico “Fora Temer”. A decoração “descolada” é aconchegante sem ser surpreendente.
A impressão começa a mudar quando, pela lateral esquerda do imóvel, um estreito corredor onde só passa uma pessoa por vez conduz o visitante a um inesperado terraço nos fundos do sobrado. Dali, a iluminada noite paulistana se mostra para o espectador como um raro long play, e a Fatiado Discos então se revela um local que transcende o gosto pela música. No centro do terraço, três homens de fala rápida e idioma incompreensível trabalham agitados na elaboração de lanches. O relógio ainda não marcou 19h de uma agradável noite de terça-feira, as cerca de 20 cadeiras espalhadas pelo ambiente ao ar livre estão todas ocupadas e o “Jantar dos Refugiados” já começou.
Realizado toda terça-feira, a noite gastronômica é uma parceria da Fatiado Discos e Cervejas Especiais com a Ocupação Leila Khaled, que abriga refugiados sírios e palestinos no bairro do Glicério, região central. Segundo os organizadores, o jantar pretende dar boas-vindas aos refugiados e “visa o ingresso dos sírios e palestinos no mercado de trabalho e também a integração social”. No caso, integração essa por meio do saj (esfirra grande), do shawarma (carne no pão) e do falafel, com salada e molho tahine.
Grafites, lambes e stencils decoram as paredes dos fundos do imóvel e a mureta do terraço, alguns com mensagens políticas, como um onde se lê “Alerta! SOMAR para o fascismo SUMIR!” e outro também clamando por um “Fora”, dessa vez tendo como alvo o deputado Jair Bolsonaro (PSC-RJ). Por volta das 19h30, o terraço já está lotado de clientes. O jantar é em homenagem aos refugiados sírios e palestinos, mas o público é mesmo predominantemente de brasileiros. O ambiente é de happy hour, com o saudável sincretismo do álcool das cervejas artesanais com lanches típicos da gastronomia árabe. Próximo da mureta dos fundos – para a qual quase toda pessoa que chega se dirige para conferir o visual –, uma comprida porta de madeira faz as honras de mesa de centro, servindo de apoio para bolsas, mochilas, copos e garrafas.
Ali ao lado, Roberto de Melo Santos, o mítico músico pernambucano radicado em São Paulo e mais conhecido como Di Melo, O Imorrível, conversa animadamente com alguns jovens sobre a cena musical de ontem e hoje. Entre os causos, ri ao lembrar da vez em que encontrou seu LP Di Melo, lançado em 1975 e considerado obra-prima do soul brasileiro, sendo vendido por quase € 5 mil numa loja na Holanda, todo arranhado e sem encarte.
Duas horas depois, por volta das 21h30, o happy hour já tem ares de balada. Casais namorando, muitas risadas, copo de mão em mão. O shawarma acabou e o que alimenta a turma agora é só o falafel.
No lado oposto do estreito corredor de entrada, uma pequena escada conecta o terraço à parte interna do sobrado. Ao lado da escada fica o improvisado caixa do pessoal da Ocupação Leila Khaled, onde os clientes pagam pelos lanches e saem dali com um bilhetinho branco marcado por traços curtos e curvilíneos. Entregue por uma jovem que pouco fala português, o papel deve ser apresentado aos cozinheiros do quiosque e não é feito para o cliente entender – ele deve simplesmente acreditar que ali está decodificado o lanche pedido. Também ao sopé da escada, diversas camisas coloridas, tipicamente africanas, estão à venda, dispostas sobre uma mesa e penduradas numa arara.
Subindo a escada chega-se ao bar e novamente à loja de vinil, onde o angolano Yannick Delass fisga a atenção do público com sua voz e violão. A oferta de cervejas artesanais brasileiras e importadas é variada. Próximo ao caixa, um cartaz dá o recado: “Respeite os vizinhos: Quintal até 21h30; Caixa até 22h30; Bar até 23h”.
O ponteiro do relógio se aproxima das 22h. Lá fora, o terraço que ferveu desde o final de tarde vai aos poucos se esvaziando, enquanto do lado de dentro um dos jovens que conversava com Di Melo dá uma canja a plenos pulmões. Em seguida, o músico angolano convida um patriota para declamar poesia, uma ode às mulheres. Enquanto os versos ressoam pela Fatiado Discos, Yannick diminui o som do violão e o “Jantar dos Refugiados” vai chegando ao fim.
Na terça-feira seguinte começa novamente.
Luciano Velleda
(Rede Brasil Atual – 15/04/2017)