Uma semana depois (18/08) do caso explícito de xenofobia contra os venezuelanos em Pacaraima, fronteira do Brasil com a Venezuela no estado de Roraima, muito se falou. Houve repreensão e defesa do ocorrido pela opinião pública, ações foram tomadas pelo governo e a reflexão eminente sobre a crise que atingiu a Venezuela com as devidas consequências no continente pela migração de milhões de pessoas.
É preciso voltar ao tema e não tratá-lo como um fato que escorre pelas centenas de notícias que lemos todos os dias, em respeito aos venezuelanos e à própria população de Pacaraima, que precisa ser ouvida.
A Rede Amazônica, afiliada da Rede Globo em Roraima, produziu uma matéria com a população local depois que os ataques se voltaram também a eles. Não queremos ignorar a xenofobia, que poderia ter resultado em mortes no triste ocorrido do último dia 18, no entanto, toda agressão precisa ser analisada em suas motivações.

O estopim, como sabemos, foi a covarde agressão sofrida por um comerciante, ação de criminosos de origem estrangeira. Segundo a reportagem – que cobriu uma carreata dos pacaraimenses pedindo paz – a população sentiu-se “trasbordada” pela insegurança da entrada diária de 700 venezuelanos em uma cidade de 12 mil habitantes sem que o governo oferecesse o apoio necessário. Para eles, há abandono das autoridades e, depois do assalto que quase resultou na morte do comerciante, a população resolveu lidar com o “problema” do seu próprio jeito.
Essa situação não é nova. Mesmo sem o trânsito de pessoas avolumado, as cidades brasileiras de fronteira são recorrentemente tratadas como “terra de ninguém” pelo alto intercâmbio comercial e humano. São lugares de índices de criminalidade e impunidade voluptuosos acentuados pela distância de suas capitais, além dos baixos níveis de desenvolvimento humano. Um entre-lugar que não pertence a ninguém e, por isso, facilmente colocado à margem.
Mas se o problema fronteiriço existe antes dessa chegada em massa em Pacaraima, por que a população tratou dessa forma o crime contra o comerciante?
Um crime é sempre um crime
Um crime sempre é um crime, independente de quem seja. Mas quando o revide se dá a um grupo todo como comparação/generalização à ação imoral/ilegal de indivíduos, há um problema que precisa ser resolvido. A generalização sobre a conduta de grupos é um acento das sociedades. No Brasil, homens negros das periferias são vistos de antemão como suspeitos porque a criminalidade se atrela a esse rosto. Não há a presunção de entrarmos nos porquês desse “apontar os dedos” no país, porém é a identificação da tipologia do criminoso e da suposta decadência moral da sociedade, em sua forma generalizada, que permitiu na história moderna do homem os principais genocídios e nos prende a uma sociabilidade de injustiças e desigualdades.
Nesse sentido, é inaceitável que centenas de venezuelanos, entre eles crianças, sejam expulsos da fronteira, tenham seus escassos objetos pessoais queimados e só não sejam agredidos devido a uma contenção policial contra brasileiros revoltados os quais, gritando o hino nacional, cometeram também seu crime. Se não houve uma agressão física, por pouco evitada, uma agressão de alta carga simbólica marcou quem tem sofrido fisicamente e subjetivamente com a miséria.
O evento marca o triste fato de que o inimigo das camadas mais abastadas da população prejudicada pelo desemprego, pelo mal atendimento na saúde e na assistência social, e pela baixa estrutura educacional e de habitação, recaia, mais uma vez, aos seus iguais. A pergunta que fazemos é: por que o inimigo continua sendo aquele que também sofre com os mesmos problemas? A hegemonia discursiva da sociedade conseguiu de forma brilhante sobrepujar questões de raça, etnia, religião, de uma nacionalidade inventada, em detrimento da ideia de classe, criadora de um abismo social no nosso continente de forma especial e em lugares periféricos globais.

O Governo pensa em soluções. Só agora?
Depois dos constantes pedidos de socorro ignorados, o presidente Michel Temer (MDB) resolveu agir. Aumento no controle de triagem, construção de mais 10 instalações de abrigo, mais R$200 milhões em apoio à região e reforço em recursos humanos, como o envio de 120 homens da Força Nacional e 36 voluntários da área da saúde, que chegarão no domingo (26).
A provisoriedade com que o governo lida com a tomada de políticas públicas no Brasil espanta. Em um país de dimensões continentais, poucos imigrantes e refugiados são recebidos. Em comparação com outros países, a proporcionalidade populacional desse contingente é irrisória no Brasil ainda que cidades de fronteira, como Pacaraima, assustem-se com a chegada de estrangeiros. Resultado da fraca capacidade de interiorização dessas pessoas a outras unidades federativas, outra medida anunciada pelo governo no último domingo (19). Não cabe a Pacaraima – nem ao Acre, como foi com os haitianos no início – segurar todo o contingente que chega dos outros países.
Políticas de recebimento de estrangeiros precisam ser planejadas a longo prazo, respaldados pela Nova Lei de Migração (2017), antecipando-se a movimentos de massa. Depois de uma intensa luta de atores da sociedade civil para que o antigo Estatuto do Estrangeiro (1980) fosse substituído por uma legislação mais cidadã, da mesma forma, há de se precaver contra estereótipos criados por fatos isolados e interesses políticos que incitam a população contra imigrantes e refugiados, situação denunciada pelo pároco de Pacaraima à reportagem da Carta Capital.
Quando se pensa que o Brasil está sendo “invadido”, prova-se que o Brasil tem recebido menos imigrantes e refugiados do que outros países vizinhos. Retratado pelo periódico inglês The Economist em uma matéria que estima em breve a superação da migração forçada em comparação à migração síria, tem-se dados que revelam essa diferença:
Sobre as falsas percepções sobre imigração, leia nossa matéria “Sua percepção sobre a imigração pode estar errada, apontam pesquisas“
Acolher é preciso
A crise venezuelana precisa ser tratada com apreço humano. Se a ONU já denunciou violações aos direitos humanos no país governado por Nicolás Maduro e o ‘mundo latino’ olha com desconfiança a uma crise historicamente motivada pela economia do petróleo, existem milhões de pessoas que estão sofrendo e têm sofrido resistências internacionais, como é o caso do Equador e do Peru, que passaram a exigir passaporte, medida que ameaça o recebimento de estrangeiros nos dois países.
Cabe ao Governo brasileiro escolher de que lado estará nesse esforço humanitário. O Brasil, país de riquezas naturais, pode ser um lugar de retomada de vida dessas pessoas. Segundo o coordenador desse site e do grupo de pesquisa Diaspotics/UFRJ, Mohammed ElHajji, não são os refugiados que precisam do Brasil, mas o contrário (Leia entrevista com ele aqui). É a riqueza de outras culturas e o ímpeto empreendedor desses indivíduos que pode ser nova tônica a um Brasil do século XXI, mais aberto às diferenças e inclusivo em políticas públicas.

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Vale ressaltar que dias depois do triste evento, venezuelanos e brasileiros voltaram a se encontrar, como é de costume na região. Embora 1,2 mil venezuelanos tenham deixado o país no dia seguinte ao caso, continua havendo trânsito entre eles e os brasileiros, que visitam o outro lado da fronteira para compras. Certamente a expulsão agressiva deles não poderá ser feita todos os dias. Deverá haver diálogo, compreensão das diferenças, repressão aos crimes e amplo e decisivo apoio dos governantes. E memória, para não repetirmos os erros.
Quem migra?
“Três em cada dez venezuelanos que tentam refúgio no Brasil têm entre 25 e 35 anos. Quase 20% são crianças e adolescentes e entre os adultos a maioria dos solicitantes é homem. Os solteiros representam mais da metade dos imigrantes, 27% estão em união estável e 15% são casados. Considerando o nível educacional, 58% completaram o ensino médio, 13% são universitários e outros 13% têm o ensino fundamental”, informou a EBC por meio do Centro de Triagem do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR).
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Otávio Ávila.
Colaborou Catalina Revollo Pardo.