Reginald ou Rei Seely, 29, é um poeta haitiano que vive em Curitiba desde o terremoto que abalou seu país, em 2010. Ele se define como um ‘refugiado feijoada’ para diferenciar o refúgio haitiano dos demais. “No Haiti não há guerra, porém existem conflitos entre as tripas na barriga do povo”. O conflito é a marca de seus textos. Ao ler, também reviramos nossas “tripas” e pensamos nosso lugar no mundo. Na terra da feijoada, negros são migrantes?

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Cabe ressaltar sua ascensão no campo literário brasileiro. Seus poemas foram publicados no caderno de cultura do jornal Gazeta do Povo e em revistas literárias nacionais e internacionais. Deu voz a sua poesia em saraus pelo mundo. Em 2017, foi homenageado na semana literária do SESC Paraná e Feira do Livro da UFPR (no Projeto de Pacote de Poesia do SESC). Participou de diversos festivais literários, entre eles o Litercultura em 2016, com o escritor Fernando Bonassi e o jornalista José Carlos Fernandes (este, já escreveu um texto sobre ele, leia). Coordena o Projeto Literário ‘Mais Leitores, Menos Preconceito’. Formado em Letras, Filosofia e Gestão Pública. Atualmente ministra aulas de francês e, claro, escreve.

No ‘Conte sua história’ da vez, ele fala de si pelos seus poemas e textos ácidos contra o establishment. Confira:

Je pense sans panser

Déjà presqu´une décennie sous les décombres

Où Haiti reste toujours dans l´ombre

La misère nous affecte plus

Et notre espoir fleurit pus.

 

Eu penso sem cuidar

Já quase uma década sob os escombros

Onde Haiti está na sombra

A pobreza nos afeta mais

E nossa esperança floresce pus. 

Nasci em um país de Sujos ao Preço onde a democracia ocorre com a demagogia, com políticos canalhas pegos em sua mente. Eles são como coveiros com a ordem da interferência estrangeira no país. O que é este país com esses políticos de bolso? Entretanto, as crianças da rua são sujas à cinza com a ajuda da UNICEF, os jovens mais decrépitos, sem emprego após gritar fora à ditadura de Duvalier (Papa Doc). Os idosos são como exumados ambulantes depois de desperdiçar a juventude em um sono letárgico por um futuro traiçoeiro.

Por isso, o povo chafurda no grito da miséria como adeptos que oram à Santa Mudança. Além disso, este país está mais perto da América, na América. É o país de férias das ONG’s e da ONU, para lavar o dinheiro da ajuda humanitária nas suas belas praias tropicais.

Após o terremoto de 12 janeiro de 2010, o meu país tem experimentado um inferno sem fogo, a esperança é no sol da noite. Naquele dia, era como uma chuva de poeira, tudo pareceu a mesma, nenhuma diferença. A única música que gemeu no coração de todos; foi como uma sinfonia, uma sintonia que provou que nós somos todos iguais. As almas dos meus irmãos falecidos viajados, ficaram na tranquilidade otimista sob os escombros anárquicos. E nós, os sobreviventes esquizofrênicos, foi a bênção de uma mudança, em nossosono do meio-dia para uma nova sociedade.

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‘Rei’ Seely no Festival Literário de Curitiba (Litercultura), 2016. Crédito: Litercultura

Às vezes após a chuva é o belo sol, como a taxa da miséria do povo que foi na escala de magnitude oito da FAO. No entanto, todos os países tinham os olhos em nós, mesmo a Somália por um gesto humanitário de queixas, grandes ou pequenas, todos enviando suas doações. Os anos perdidos nos discursos e as entranhas do cataclismo esquecido ficam no coração dos órfãos e dos amputados. Antes, pensei que este mal foi um bem, esqueci completamente que vivo em um hemisfério selva, donde a doutrina de James Monroe está em vigor. As ONGs vieram com seus projetos sociais de sanguessuga, elas foram formadas como templos religiosos, vestindo a Boa Notícia para uma nação em perigo, é sempre assim seu propósito no mundo.

Sou um povo explorado e marginalizado, desde o esperma da vidaque me deu luz neste mundo do princípio de contrário. Aqui, é por isso que a farsa da imprensa nos cumprimenta e nos embeleza como negros sujos. Uma ironia estúpida sem fundamentos com críticas para aquele que é humanista que pode ler. Ler no sentido de conhecer o outro sem o marginalizar.

 

Meu refúgio é um colégio sem privilégio

Onde meu objetivo se torna subterfugio. 

 

Meu visto humanitário, meu tormento

Senhor o governo, não sou daqui para desfrutar sua sinfonia de Viva ou Fora do seu belo país queimando pelo frio e calor. Nem para assistir sua peça teatral da Luz Racial no Palco da Pele. Pode ser que você tenha esquecido. Sou um refugiado feijoada.

Senhor o governo, temer a minha vida minha situação é perplexa cheia de preconceito mesmo para um emprego analfabeto (…)

Senhor o governo, não me deixa ir à tranquilidade ao esquecimento porque meus irmãos não param de engolir sua certidão de nascimento no mar dos países vizinhos diariamente com seu visto humanitário.

Senhor o governo, tudo aquilo é meu dilema. Querido Haiti, você tem saudade de mim. Volta é minha única preocupação.

Racismo é sismo

Ele desaba o mundo

Nas falhas do preconceito. 

Nós vimemos num século de raciocínio mentiroso, cheio de complexo agressivo, onde a realidade fica ilusória na mente. O medo do outro se aproxima no vazio prejulgado ignorante da afirmação do ser fraternal refutado. A alma se perde no infinito concreto, nos céus dos deuses que riem na luxúria finita e a satisfação de viver sem morrer sob o raio do sol da riqueza. Tudo é perplexo: a vida na alegria, a morte na tristeza! Morrer não pode ser triste porque é a inexistência. Uma existência que percebe no falecimento que ninguém revê. O caminho de descartar a loucura de sua essência é simples: morrer para reviver. Se morrer tem a reencarnação a realidade fica mesma, ou seja seu ser reencarnado é o pecado miserável perpétuo da existência. A história nos ensina a sociologia da existência, a geografia nos limita de nossas diversidades para criar adversidades de existência e a filosofia nos joga na loucura da existência (…).

 

Para você, cabeça de vento

 Eu estou falando com você

Você que não fez a história

Eu venho de um país de pé

Saqueado pelo Galo e a Águia

 

Eu não sou nem cristão, nem católico

Que causou a guerra de cem anos

Nem a metrópole da religião capitalista

Pregando resiliência, fabricando miséria

 

Eu sou a mãe, mãe da Liberdade

Abandonada pela ignorância de desigualdade

E destruída pela Casa Grande

Em um mundo implacável de dificuldade

 

Eu tenho raízes humanistas da minha infância

Sem compromisso e com coração

Eu mostrei-lhe o caminho da razão

Nós éramos inseparáveis na época

 

Eu sei que minha vida é guerra

Você aprecia a força de meus filhos

Tratando-os bons trabalhadores como escravos

Com trabalhos pesados por um salário de miséria

 

Eu não sou nem lixeira da América

Se você utilizar minha pobreza

Para construir suas cidades de beleza

Você é sanguessuga com sua ajuda humanitária

 

Filhos de povoamento privilegiados!

Filhos de exploração marginalizados!

A história dos povos não é uma ficção

Porque nós somos todos os produtos de importação.

 

Só um paf

Não quero muito

Só um paf de maconha!

Só um paf de fumaça pura!

É como um grande obrigado

 

Eu sou um refugiado feijoada

Há três meses, eu estou sem comida

Na casa da Churrasqueira

 

Eu faço tudo o que eu posso

O cheiro da mesa agita minha sede

Meu nariz está na chuva

E minha boca inunda pela fome

 

Tem aluguel para pagar

Tem família para ajudar

Têm crianças para alimentar

Minha vida está jogada na lixeira

 

Minha alma está triste

Porque a cor da minha pele

É meu CV

Minha vida não tem horizonte

 

Eu procuro credito no Banco

Não tem! Pelo desempregado

 

Oh Lengleçu, Oh Senhor!

Quem pode me escutar

Dê-me um, por favor!

Recebe minha oferta

 

Não quero muito

Só um refresco mental

No meu sofrimento social

É como um grande obrigado

 

O rico pensa que ele é pobre

O pobre pensa que vai ser rico

De fato, é a dualidade

De um mundo doído.

 

Anotações

Paf de maconha: sentido pejorativo de ajuda

CV: currículo vitae

Lengleçu: Espirito na religião Vodu

 

Quem gosta de ler

Ama as pessoas

Ler é um convite à convivência

Entre mim e você.

Oi Terra!

Tanta dor de desigualdade no mundo

Humanidade é igual ao princípio de contrário

Yin-Yang, terra e céu, calor e frio…

Existirá paraíso ou inferno?

Tanto grito de marginalização sem felicidade

A gente ordena suas leis para governar

Metrópole e colônia, escravidão e liberdade

Existe capitalista ou humanista?

Tanta paixão de divergência

Entre as raças e as categorias do mundo

Sobre o vestido da sensação humana

Para criar a discriminação no diário

A terra se torna como a selva

A expressão ´´ viver juntos´´ parece inusitada

Substituindo por capciosa palavra

Para estabelecer a diferença

O homem contemporâneo está infectado

Pelo veneno de ódio no espírito

O mundo evolui deixando seus efeitos

E suas marcas no cérebro humano

O inferno é a prisão mental dos infelizes

Viva a vida como ela está com os desafios

Brancos e pretos, ricos e pobres

Da terra, nós somos todos os herdeiros.

Ninguém merece isso

Bom cheiro

Bom cheio

Bombeiro

Apague também o fogo

Na casa do cego. 

Carta satírica

Ao governo Amer

Sua Excelência Presidente Thé-mer

A hora que está

Minha ventura deriva no mar morte

Onde as ondas imundas são mudas

Quanto vale essa mudança

Com seus jeitos de projetos maldosos

Pelas viúvas, pelos idosos?

Pelos trabalhadores entojados pela miséria do campo?

Pelos professores honestos que ensinam o bem, mal vida

Às nossas crianças; com um salário execrável?

Pelos estudantes cansados de sonhar

Um emprego de qualquer coisa

Depois de planejar sua aspiração profissional?

Pelos refugiados feijoada sem emprego?

E pelos outros sem voz que estão nesta foz atroz?

Sua Excelência Presidente Thé-mer

Sua reforma de formas me treme no coma

Será meu horizonte em meses a nêmese

Enquanto minha vida conjuga como êmese

Não posso fazer as minhas braçadas

Sou um inválido de tanto golpe

Que tomei na cabeça

É a real idade da realidade do país nos bairros

Receba as odes do coro nas escolas

Nas universidades, nas ruas

Essa insurreição não vai estar a temer

Porque tudo anda mal

E por isso anda bem a minha sátira.

Tradução Francês-Português

Amer: amargo

Thé: chá

Mer: mar

 

Lembramos que no ‘Conte sua história’ os textos são testemunhais e/ou opinativos, respondendo à demanda de abertura deste site a imigrantes e refugiados e suas livres opiniões. No caso do “refúgio haitiano”, o estatuto jurídico brasileiro confere aos haitianos o visto humanitário devido a características econômicas e não necessariamente ao que se está associado primariamente ao refúgio: perseguições de ordem política, religiosa, de raça ou associação. No entanto, tais terminologias são por muitas vezes questionadas, como faz o autor do texto.