Na última sexta-feira (26), o Ministro da Justiça Sérgio Moro publicou no Diário Oficial da União a Portaria n.º 666/2019, que dispõe sobre o impedimento de ingresso, a repatriação e a deportação sumária de “pessoa perigosa” ou que tenha praticado ato contrário aos princípios e objetivos dispostos na Constituição Federal.

Diante de fundadas preocupações com o conteúdo da Portaria, faz-se necessário um balanço das inconstitucionalidades da medida e do ambiente político que pode ter ensejado sua publicação.

Apesar de a Portaria estar de acordo com o tratamento dado aos estrangeiros pela administração de Bolsonaro – que, desde o início, ao retirar o Brasil do Pacto Global para as Migrações, afirmou que “O Brasil é soberano para decidir se aceita ou não migrantes” –, o ato normativo afronta a Constituição Federal e a legislação sobre direito migratório, contrariando standards democráticos de controle migratório fundados no respeito aos direitos humanos dos migrantes.

Primeiramente, ressalta-se que todos os artigos da Portaria n.º 666/2019 contornam a expressão “pessoa perigosa”, inédita no ordenamento jurídico brasileiro, que se refere à pessoa suspeita de envolvimento em crimes dispostos em rol taxativo (art. 2º, incisos I a V). É de causar espanto e indignação que uma portaria ministerial traga a criação de um conceito jurídico vago que flerta com o autoritarismo do período ditatorial brasileiro e não possui correspondência com os parâmetros da legislação migratória brasileira.

É certo que a expressão remete a um paradigma de segurança nacional, em que o imigrante é visto como uma potencial ameaça para a segurança do país e não como um sujeito de direitos. Assim, a Portaria contraria os princípios introduzidos pela nova Lei de Migração (Lei n.º 13.445/2017), construída por meio de um forte diálogo com a sociedade civil, e retoma aqueles norteadores do antigo e superado Estatuto do Estrangeiro (Lei n.º 6.815/1980), aprovado durante a Ditadura Militar.

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Foto: Alex Ferreira/Câmara dos Deputados

Ainda, ressalta-se que a Portaria n.º 666/2019 regulamenta uma prisão cautelar para deportação, o que é inconcebível à luz da Constituição Federal de 1988, que extinguiu a prisão administrativa e da legislação brasileira vigente. A Lei de Migração, que institui a deportação, por sua vez, não faz nenhuma menção à prisão ou a qualquer outra medida cautelar no procedimento de retirada compulsória de migrantes no Brasil e, inclusive, estabelece expressamente que “ninguém será privado de sua liberdade por razões migratórias, exceto nos casos previstos nesta Lei”. Assim, qualquer forma de prisão cautelar para fins de deportação ou expulsão é indevida, por ausência de previsão legal.

Apesar de o Ministro Sérgio Moro alegar em sua conta no Twitter que “não faz sentido exigir sentença condenatória, transitada em julgado ou não, para barrar a entrada de estrangeiro (…)”, é inadmissível a criação de um mecanismo que permita uma medida gravosa de restrições de direitos – no caso o impedimento de ingresso, a repatriação, a deportação sumária – pautada na mera suspeita de envolvimento em conduta criminosa (provenientes de investigação criminal em curso, por exemplo) e sujeitando ao manto do sigilo os processos nesse contexto, inviabilizando o controle social. Tal previsão fere o princípio constitucional de presunção de inocência ou da não-culpabilidade previsto no art. 5º, LVII, da Constituição, do devido processo legal2, bem como o princípio da não-criminalização das migrações, disposto na nova Lei de Migração (Lei n.º 13.445/2017).

Essa breve análise permite evidenciar que a Portaria rompe com o paradigma de direitos humanos, que deve nortear a política migratória a partir da Lei de Migração; o que o ato normativo faz é usar essa lei para descaracterizar seu conteúdo. Em análise mais detalhada, é interessante notar o enquadramento político que parece delimitar os contornos da Portaria, expressos na fala do próprio Presidente Jair Bolsonaro:

“Ele [Glenn Greenwald] não se encaixa na Portaria. Até porque ele é casado com outro homem e tem meninos adotados no Brasil. Malandro, malandro, para evitar um problema desse, casa com outro malandro e adota criança no Brasil. Esse é o problema que nós temos. Ele não vai embora, pode ficar tranquilo (…)”.

Não à toa, surgiram diversas associações entre a Portaria n.º 666/2019 e a crise envolvendo as trocas de mensagem entre o Ministro Sérgio Moro e Procuradores da Operação Lava Jato, publicadas pelo The Intercept, do jornalista Glenn Greenwald. É inadmissível o desrespeito do Presidente ao instituto da reunião familiar, que é historicamente reconhecido como direito do migrante e positivado como princípio da política migratória brasileira. O Presidente, embora reconheça a existência de uma família com crianças brasileiras, demonstra total desprezo pelo instituto, reduzindo o direito à reunião familiar a um artifício para burlar o controle migratório – a uma “malandragem”.

O Ministério da Justiça e Segurança Pública divulgou nota oficial sobre a Portaria ressaltando a necessidade de “instrumentos que deem agilidade para o Estado de retirar pessoas perigosas que nem deveriam ter entrado no Brasil”. Essa fala ministerial causa preocupação evidente, pois desvirtua completamente o conceito de deportação, vinculado à condição de irregularidade no país, conforme dispõe o art. 50 da Lei de Migração. Com a chamada “deportação sumária”, a caracterização da “pessoa perigosa” justificaria a retirada compulsória do país, criando insegurança jurídica para os migrantes que vivem regularmente no país.

Não é possível medir, neste momento, como se dará a aplicação concreta da Portaria, mas já se pode evidenciar seu conteúdo manifestamente contrário aos princípios que regem a política e a legislação migratória brasileiras. Portanto, diante da gravidade e da inconstitucionalidade incontestáveis do ato normativo, acreditamos ser imperativa uma reação imediata da sociedade para barrar a retomada governamental da ultrapassada lógica de criminalização das pessoas migrantes.

 

Carolina Montaño. Bacharela em Relações Internacionais e graduanda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Membra do ProMigra – Projeto de Promoção dos Direitos de Migrantes da Faculdade de Direito da USP (FDUSP)

Mariana Nogueira. Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Membra do ProMigra – Projeto de Promoção dos Direitos de Migrantes da Faculdade de Direito da USP (FDUSP)

Vitor Bastos. Bacharel em Relações Internacionais e graduando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Membro do ProMigra – Projeto de Promoção dos Direitos de Migrantes da Faculdade de Direito da USP (FDUSP)