O artigo foi traduzido ao créole haitiano. Acesse aqui.

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Haitiano confronta Bolsonaro no encontro que o presidente faz recorrentemente com seus fãs. Reprodução do Youtube

“Bolsonaro, acabou (…) Você não é presidente mais, você deve desistir”. Foram essas as palavras que um haitiano disse a um metro de distância do presidente da República, Jair Bolsonaro, dias depois dele ter participado das manifestações em defesa do próprio governo. Segundo um vídeo disponível no Youtube, trata-se de homem chamado Markenson, residente no país há 3 anos.

Estávamos no início do boom informacional sobre o novo coronavírus e as massas bolsonaristas foram às ruas, desobedecendo as autoridades sanitárias. O impulso? O encorajamento de Jair Bolsonaro para que lutassem pelo governo.

No desabafo do haitiano, era evidente que o ponto alto da crítica era o vírus que o chefe da nação desdenhava. A resposta era a que se esperava de um Bolsonaro: “volta para o seu país”.

Como ficou claro nos últimos dias, qualquer declaração do presidente tem efeito imediato na opinião pública, mesmo que haja distorções ou negação de evidências científicas. Com esse caso não foi diferente. Mesmo os haitianos apoiadores do atual governo brasileiro sugeriram como solução a saída voluntária do conterrâneo.

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Crédito: Elaine Javorski/Facebook
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Reprodução do Youtube

Não pode ser assim. Um país não é como uma casa de família em que o hóspede segue a rotina e as práticas de seu dono. Em um país, esse cargo não existe. Do presidente da República a qualquer outro cidadão, nacional ou não, os direitos são os mesmos – pelo menos na teoria. Talvez seja o contrário: é o chefe de Estado que tem por obrigação tratar com polidez seus governados.

Ele não tem o direito de debochar de jornalistas trazendo um palhaço em seu lugar para responder perguntas de interesse público. Mas o comediante pode debochar do presidente em um programa humorístico ou no Carnaval da Sapucaí. Cada um no seu quadrado. A não ser que ser palhaço o toque mais no âmago do que a liderança de uma nação. Aí, somos todos que precisamos convidá-lo a desocupar o cargo.

Muitos haitianos saíram em defesa de Bolsonaro nas redes sociais e este não é o principal problema. Eles associam a figura do presidente à figura do Brasil como nação acolhedora, embora o antigo deputado tenha sido um opositor ferrenho à Nova Lei de Migração (13.445/2017), desenvolvida durante os governos petistas e promulgada na gestão de Michel Temer. De toda forma, é direito de cada um gostar ou não da sua figura. O que espanta é a reafirmação de que os incomodados se mudem. Mesmo a passos lentos e deveras imperfeita, a nossa democracia permite que qualquer um manifeste sua crítica, inclusive os cidadãos estrangeiros.

Quando alguém “convida” o outro a sair do país por discordar de opiniões, este exerce a pior forma de discriminação que um estrangeiro pode receber. A despossessão do lugar em que se vive não diz respeito apenas ao território físico, mas recai sobre todos os afetos enredados nele. Diz respeito ao duro estatuto da sub-cidadania que o sociólogo Abdelmalek Sayad já afirmava na desilusão da imigração e os paradoxos da alteridade.

A discriminação de alguns haitianos nos mostra que o caminho é longo. Não há pureza nas distinções socioculturais entre o Norte e Sul global e o processo educativo se faz imperativo. Não nos esqueçamos de Paulo Freire e sua importante frase: “Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é tornar-se o opressor”. 

Não só os haitianos, porém qualquer nacional que aqui resida, precisam saber que têm o direito constitucional da crítica e está tudo bem. Contra o presidente e até contra o país que reside. É um direito. Oxalá, possamos ampliar esses direitos, permitindo que a participação política dos estrangeiros seja concretizada nas urnas, com poder de votar e ser votado. Se queremos que os direitos humanos realmente sejam “universais”, precisamos levar a sério nossa vida em comunidade e isso abrange cada um que pisa nessa terra.

Otávio Avila, editor do estrangeiro.org e membro do grupo Diaspotics/UFRJ.