Quem acompanha ou vive na pele o tema das migrações no país se deparou, na semana passada, com um assunto debatido em parte da opinião pública. Por sorte, muito mais a favor do direito do imigrante do que da “xenofobia travestida de patriotismo”, como apareceu nas redes sociais, as criticadas falas de candidatos políticos nos obrigam, contudo, a acompanhar o processo eleitoral e o crescimento ou descenso no apoio aos sujeitos envolvidos.

O candidato a prefeito de Boa Vista pelo PSL, partido que elegeu o atual presidente da República, utilizou o acentuado fluxo de venezuelanos pela fronteira brasileira para promover sua campanha ao posto mais alto da capital roraimense. Não tardou muito e logo outra candidata à prefeitura da mesma cidade, do Partido Progressistas, apareceu sob o mesmo holofote. 

Matéria do O Globo destaca as campanhas preconceituosas de Boa Vista/RR.

Reivindicando excesso de privilégios pelos venezuelanos que vivem na cidade, os candidatos negaram serem xenófobos, mas a externalização da ideia demonstra o contrário. Afinal, quais privilégios são esses? Com base neste acontecimento eleitoral em um tempo em que visões de mundo são absorvidas pelos palanques e multiplicam repercussão, engajamento e, por consequência, voto, a radicalização aparece como motor para vitórias improváveis e ascensões políticas meteóricas. Trata-se, então, de um efeito contemporâneo de comunicação política em um mundo tomado por nacionalismos, cujos princípios e origens demandariam um artigo próprio.

Privilégios

Não é difícil afirmar a existência do privilégio no Brasil. Somos o sétimo país mais desigual do mundo, cuja renda do 1% mais rico é 33,7 vezes maior que a dos 50% mais pobres e mesmo com o agravante a) do racismo entranhado nas estruturas, b) da desigualdade de gênero e c) dos pobres que pagam mais impostos que os ricos, ainda assim, a meritocracia surge como substitutiva de políticas públicas que enfrentem esses gaps sociais.

O debate já virou meme pela internet e reconduziu para o campo do real a falsa assimetria produzida pela narrativa comercial, como o da personagem Bettina, de uma empresa financeira, no início de 2019. Mas a tentativa de colar a ideia de privilégio às estruturas do que é público tem ganhado força e se tornado o contra-ataque predileto do discurso liberal. Sem ser um problema moral, a priori, pois trata-se de um debate social-econômico racional da vida pública, o jogo entre o liberalismo e o estado de bem-estar social sobre os privilégios desagua em barbárie, vivida proeminentemente na base da pirâmide social, e aí sim, ganhando contornos imorais, como é o caso da xenofobia e do racismo.

Reprodução da internet

Mas, de fato, do que se tratam os privilégios reclamados pelos candidatos de Boa Vista?

Ao que tudo indica, eles entendem como privilégio a igualdade de direitos entre venezuelanos e brasileiros. O acesso irrestrito ao Sistema Único de Saúde (SUS) é um direito constitucional e ratificado pela Nova Lei de Migração, sancionada em 2017 pelo ex-presidente Michel Temer e muito criticada à época pelo então deputado Jair Bolsonaro, pelas mesmas circunstâncias dos atuais candidatos roraimenses. Se faltam leitos, horários para consultas e estrutura de atendimento, a culpa não é da população venezuelana que trocou seu país de origem apenas por optar pelo direito de bem-viver – ou sobreviver.

Repórter Brasil: Em espanhol, a mensagem: “lutamos por um sonho”. Em 2013, centenas de pessoas foram às ruas em São Paulo pressionar por mudanças no antigo Estatuto do Estrangeiro. Fotos: Lisa Carstensen

Aliás, o acolhimento de saúde a imigrantes é tão antigo quanto a própria instituição hospitalar. A filósofa e psicanalista Julia Kristeva[1] lembra que nos primeiros séculos do cristianismo, os peregrinos eram acolhidos em hospitia ou xenodochia. Esses locais surgiram como centros de assistência para os pobres e estrangeiros e, aos poucos, tornaram-se lugares para o cuidado de doentes. O hospital é, em sua origem, um lugar para o cuidado daqueles que estão longe de suas casas e, no século XXI, não deveria discriminar pessoas pela cor da pele ou nacionalidade, embora seja uma realidade ainda denunciada.

Assim como na saúde, a limitação de vagas na educação para imigrantes e refugiados também é promessa de um dos candidatos, o que parece ser mais cruel se lembrarmos que a barreira linguística é a maior dificuldade de inserção laboral e social. A visão sobre o estrangeiro assumida por eles entende o tratamento igualitário entre imigrantes e nacionais como previlégio e a desigualdade de tratamento aos estrangeiros como a ‘ordem natural das coisas’, mesmo que as necessidades sejam tão ou mais evidentes quanto àqueles que vivem em seu lugar de origem, dominam a língua e as práticas culturais.

Cidadania condicionada

Não basta aceitar que o imigrante resida no seu país, é preciso oferecer condições de sobrevivência para que este deslocamento não se transforme em um problema ligado à miséria e à criminalidade. A chegada de milhares de venezuelanos a uma cidade de cerca de 400 mil habitantes (o maior aumento populacional de 2018 para 2019 no país), como é o caso de Boa Vista, suscita contribuição federal. O morador que olhava a praça Simón Bolívar repleta de barracas podia imaginar miseráveis à espera de pão, mas é por trabalho e documentação que eles desejavam. Se na cidade é impossível acolher a todos, governo federal, organizações não-governamentais, ONU e igrejas, mobilizam-se para interiorizar esse excesso de mão de obra por esse país de dimensões continentais.

A Venezuela e o estado de Roraima são os principais lugares de origem e de destino para pedidos de refúgio no Brasil ao menos desde 2017. Fonte: Conare/ACNUR.

Mas tais percepções evidenciam um olhar estritamente laboral ao imigrante. Diz Kristeva – e também Abdelmalek Sayad[2] – em sua acepção pelo drama subjetivo da imigração que “o estrangeiro é aquele que trabalha”. Nessa visão, ele existe para isso e apenas para isso. Falar menos é trabalhar mais e só assim ele poderá ser aceito em uma comunidade que não é sua, mesmo que seja necessário aceitar não receber o salário combinado ou ser barrado em um sistema público que o deve atendimento por lei, como os casos relatados em um podcast de imigrantes brasileiros nos EUA.

No entanto, a visão de uma cidadania condicionada ao trabalho nos impede de crescer como sociedade e ouvir as demandas dos ‘estranhos’ a nós. É com o olhar do estrangeiro que pudemos, ao longo da história, conhecer melhor as sociedades. A antropologia se apresenta como a arte da imposição do olhar forasteiro ao que parece comum e ordinário, tal como fazem a pintura e a literatura, como as realizadas por Jean-Baptiste Debret e Maria Graham em sua evocação de um Brasil imaginado experimentado por seus olhos estrangeiros.

Debret e a Missão Francesa no Brasil.

De que olhar e de que vozes estamos nos referindo?

A tradição da antropologia e a formação das imagens sobre o Brasil nos provoca a essa questão. Será que só podemos ser observados e comentados por grupos que consideramos superiores a nós? Colhemos ainda o resultado de uma antropologia eurocêntrica, de uma arte colonial da qual nos acostumamos a ser representados? 

Trazendo um pouco da tese que desenvolvo sobre os imigrantes que ocupam as redes sociais como empreendimento discursivo individual, percebi no levantamento de canais do Youtube produzidos por estrangeiros no Brasil a proeminência de venezuelanos, norte-americanos (EUA), sul-coreanos, angolanos e franceses respectivamente; mas, quando pareados os acessos, os youtubers dos EUA dominam com grande vantagem, seguidos por chineses, sul-coreanos e franceses. Leia de novo a ordem e veja quem perdeu lugar no ranking.

De toda forma, a rede social se apresenta como lugar de contraposição à ideia de que o imigrante seja apenas uma força de trabalho. Por seus canais de YouTube, que também se caracterizam por serem vídeos-diário (vlogs), quem os acessa pode conhecer melhor aquela pessoa, sua vida antes da emigração e sua realidade como imigrante, pai, esposa, irmão. Foi com uma dessas imigrantes, que já foi tema de texto aqui, que o caso ganhou força entre a comunidade venezuelana e virou assunto jornalístico (aqui também).

O canal da venezuelana Vicky Márquez recebeu o cubano Jean David Ortega (@forasteroenbrasil) para contar sua história de migração. É comum entre os youtubers estrangeiros essa aproximação e parceria que alia audiência e variação de conteúdo.

O desfecho do caso só acontecerá com o resultado das eleições. Nossa democracia, ainda restrita ao voto, entregará a este ato a medição dos ânimos da sociedade. De toda forma, mesmo que um desses candidatos vença o pleito eleitoral, não teremos uma população que se considere xenófoba ou racista. É raro que assumam essa posição por puro supremacismo, uma incongruência na realidade brasileira; e sim, por consequência das desigualdades e de privilégios ainda mal compreendidos que divide e aprofunda o estado de melancolia social pela desesperança de futuro.

Aos imigrantes, resta divulgar quem são e o que fazem, dialogar com seus diferentes, não se calar por seus direitos previstos em leis conquistadas. Poder falar é um privilégio da raça humana.

Referências:

[1] Kristeva, J. Estrangeiros para nós mesmos. RJ: Rocco, 1994.
[2] Sayad, A. A imigração ou os paradoxos da alteridade. SP: Edusp, 1998.

Otávio Ávila
Pesquisador de doutorado do Diaspotics/UFRJ e editor do oestrangeiro.org