Crédito: Nícolas Neves Amancio

As temáticas de gênero e das relações interculturais têm ocupado posição central na minha trajetória acadêmica. A minha pesquisa do mestrado[1]: “Mulheres entre culturas: afeto e interculturalidade no contexto das migrações transnacionais” (acesse a pesquisa aqui) apresenta muitas inquietações sobre as narrativas e histórias de vidas de mulheres de diferentes nacionalidades. E me questiono, na minha posição de mulher do Sul Global, como as mulheres casadas, em contextos transnacionais, negociam e produzem sentido, valores, visões de mundo e projetos? 

A pesquisa foi realizada entre o ano de 2018 e 2020 sob a orientação do prof. Dr. Mohammed ElHajji e sob a co-orientação da prof. Dra. Catalina Revollo Pardo. No período, realizei um trabalho de campo, com entrevistas com seis mulheres de diferentes nacionalidades (Brasil, Bósnia, Estados Unidos e Porto-Rico) casadas com homens (Brasil, Israel e Senegal) em relacionamentos heteronormativos, com idades entre 29 a 51 anos. 

A pesquisa tinha o objetivo conhecer as experiências dos casais mistos, nas dimensões das migrações transnacionais, das narrativas identitárias das mulheres e práticas interculturais. Os papéis de homens e mulheres, muitas vezes, são diferenciados do contexto cultural do país de origem. Neste sentido, procurei entender como o feminismo alterou as relações afetivas, com base nos princípios de igualdade e companheirismo.

O casamento entre pessoas de nacionalidades distintas requer uma adaptação que acontece no nível social e afetivo. E existem diferenças que podem ser uma experiência reversa ao modelo estabelecido no país de origem. Os casais interculturais (Uso as nomenclaturas interculturais, binacionais, mistos, transnacionais para denominar o mesmo termo. Lind (2008) acredita que os conceitos são tidos como sinônimos e não parecem ser muito claros, porque ainda é uma área nova, com estudos recentes) são formados por indivíduos que têm valores diversos, complexa relação de gênero, paternidade e maternidade. Além de hábitos culinários, religiosos e sociais diferentes, as negociações são feitas entre fronteiras, línguas, gerações, etnias, raças, tradições. Identificamos, por meio da interculturalidade, os aspectos que envolvem o cotidiano de conflitos, negociações e apropriações. 

Os estereótipos sobre masculinidades e feminilidades perpassam o sentido dado pela região periférica em relação aos outros espaços etnocêntricos. Escolhi como corpus de análise entrevistas entre mulheres brasileiras e estrangeiras para descobrir as diferentes narrativas. Dessa forma, o trabalho buscou, a partir do estudo sobre gênero, entender as narrativas étnicos-raciais dentro do núcleo familiar.

O Brasil, por ter sido incluído nos circuitos do turismo sexual, apresenta estereótipos relacionados às mulheres brasileiras, com grande visibilidade no cenário internacional. A racialização é sexualizada[2]. O imaginário de representação da mulher brasileira está associado à intenção de fazer sexo, com propensão ao mercado de trabalho sexual. As mulheres brasileiras são apresentadas por imagens associadas à feminilidade, domesticalidade e sexualidade, sem considerar as diversas origens, classes sociais, raças, entre outros.

O conceito da história única, desenvolvido pela nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie[3], explica como os estereótipos são incompletos e superficiais. Não podemos incluir definições parciais para compreensão da complexidade do fenômeno, sem levarmos em consideração os estereótipos estigmatizados sobre a mulher brasileira e o homem brasileiro.  As concepções de família e gênero, em diversas culturas, são diferentes. As representações do cumprimento das funções de gênero e patriarcais em termos familiares, paternidade ou sexualidade reforçam as hierarquias sociais e fronteiras étnicos-raciais.

Mediações socioculturais: processo de construção, reconstrução e desconstrução entre casais interculturais

As redes sociais e aplicativos de comunicação, como o Skype e o WhatsApp, transformaram a intimidade e os relacionamentos, pois permitiram a manutenção de relações deslocadas, móveis e não estáveis, diferentemente do modelo tradicional. A internet propicia uma nova forma de interação, pois os parceiros estão presentes virtualmente online, sem necessariamente estarem fisicamente na mesma cidade. Os indivíduos geralmente se conhecem em um país específico, permanecem um período a distância, até que um dos parceiros resolva mudar do seu país de origem para outro território.

A mobilidade humana e a adaptação parcial em adotar costumes diferentes da cultura de origem podem representar uma transformação nos referenciais de pertencimento. Os sentimentos de inadequação podem surgir, provocando desconfortos e traumas. Os processos são dinâmicos na tradução entre duas culturas. E isso é refletido nas questões de gênero e nos papéis sociais entre homens e mulheres.

 O espaço de interação e interpretação entre homens e mulheres (feminilidade versus masculinidade) perpassam por dificuldades culturais sobre gênero e representações sociais. Os “choques” culturais referentes às masculinidades e feminilidades modificam em diferentes países. A consciência em relação aos aspectos conflituosos permite uma aproximação necessária para identificar traços subjetivos que interferem no processo de adaptação e integração ao novo espaço social e simbólico. 

A migração provoca uma interpretação e tradução para os indivíduos que atravessaram fronteiras territoriais e psíquicas, mesmo para àqueles que nunca saíram do seu país, ao relacionar-se com o marido ou esposa. A integração é um espaço de negociação, e há dificuldades de estabelecer laços fora do ambiente familiar. O estrangeiro ao inserir no país de destino apresenta diferentes dificuldades pelas representações de discriminações, racismo e xenofobia.

As interlocutoras que migraram para o Brasil ou mesmo se relacionam com parceiros de outras nacionalidades são atravessadas pelas mudanças decorrentes do relacionamento. As entrevistadas tiveram que negociar, adaptar-se parcialmente aos valores do parceiro. Os hábitos da culinária são mais fáceis de serem incorporados. Entretanto, as questões religiosas e a educação dos filhos são aspectos mais conflituosos. 

A aceitação das tradições, religião, língua, entre outros, permite o desenvolvimento de competências interpessoais mais flexível e adaptável às situações variadas. A interculturalidade afeta a dinâmica de interação entre os casais. Nesse sentido, a interculturalidade propõe um processo de “colocar-se em questão”. E há um desenvolvimento das individualidades nos aprendizados interacionais.

As práticas religiosas apresentam formas híbridas. Os cônjuges negociam ou assumem a religião de um dos parceiros. A interlocutora Mame, brasileira, é casada com um senegalês. Ela trabalha em um restaurante como garçonete, em São Paulo. Conheceu o marido através de amigos senegaleses. Mame era convertida ao islamismo quando conheceu o marido e disse que se adaptou a cultura africana. Ela se sente muito aceita e amada, como se tivesse nascido na África. 

“Eu me adaptei à vida dele. Eu tenho essa coisa ligada à África. A educação aqui, no Brasil, é bem diferente. A gente tem tanta cultura, mas não tem uma” (Mame, março de 2019). 

Juliana*, brasileira também é casada com um senegalês. Ela conheceu o marido no ambiente de trabalho. Ela era técnica de segurança de trabalho. Ambos trabalhavam em uma empresa de construção. Atualmente, montaram um negócio de roupas e artesanatos africanos. O marido tem alguns hábitos diferentes dos dela, como por exemplo, a religião. Ela não se converteu ao islamismo. “Ele não abre mão de nada se prejudicar ele em relação à religião dele. E isso não interfere no meu relacionamento com ele. Eu sou muito tranquila” (Juliana, março de 2019). 

Juliana e seu marido. Arquivo pessoal.

A hipótese deste trabalho é que as mulheres ainda continuam fazendo sacrifícios em prol da família ou marido e colocam a família como prioridade (cabendo somente a ela fazer concessões). Diante disso, procuramos entender os papéis sociais. Interpretamos que, em alguns casos, mulheres e homens ainda apresentam referenciais do modelo de família patriarcal. Alguns casais seguem os padrões sociais estabelecidos, mas outros não.  

Os papéis sociais estabelecidos entre homens e mulheres podem ser invertidos devido à dificuldade de inserção no país de destino. Um dos parceiros deverá renunciar e negociar para integração e adaptação entre duas culturas distintas. A interlocutora brasileira Maria, cujo marido israelense, no Brasil, é mais dependente dela. Ela trabalha e ele cuida dos filhos, papel que era exercido por ela anteriormente em Israel. No discurso de Maria* percebemos que quando há a inversão de papéis, muitos problemas podem surgir. É necessária uma flexibilidade maior para superar as dificuldades.

No entanto, Elisa* relatou que as tarefas domésticas são mais divididas entre os dois. Ela afirmou que ambos não conversam com outros casais sobre isso porque, presumimos, eles não querem ser vistos como “diferentes”, já que o Brasil é um país machista. Concluímos, por meio das entrevistas, que alguns casais apresentam “posturas” com base no modelo patriarcal. Entretanto, outros têm modelos mais “contemporâneos”, com as responsabilidades financeiras e domésticas divididas.

A mulher ainda vive em constante contradição, como sujeito deslocado e descentrado[4] em um mundo globalizado. Existe um senso comum que atua na condição de “subalternidade”[5] feminina em relação à dominação masculina. Os homens e mulheres estão em um processo de transformação e pode ser que não saibam lidar com todas essas mudanças, principalmente em situações de desenraizamento social, cultural e familiar. Ainda (nós) mulheres temos feito muitas concessões em prol do casamento e da família. 

Escrevi a dissertação de mestrado a partir do lugar de narradora-personagem, observando as experiências amorosas e interculturais vivenciadas no cotidiano por meio de novos olhares de outras narrativas de vidas, e como uma tradução do pensamento de uma mulher da América Latina.  

*nomes fictícios

Referências:

[1] GONÇALVES, C. Mulheres entre culturas: afeto e interculturalidade no contexto das migrações transnacionais(Dissertação de Mestrado). Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de Psicologia, Programa de Pós-graduação em Psicossociologia e Comunidades e Ecologia Social, Rio de Janeiro, 2020. 
[2] PISCITELLI, A. Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de migrantes brasileiras. Sociedade e Cultura, v. 11, n. 2, jul./dez. 2008.
[3] ADICHIE, C. N. O perigo de uma história única. Trad. Julia Romeu. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
[4] HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. 5. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2015.
[5] SPIVAK, G. Pode o subalterno falar?Belo Horizonte: UFMG, 2010. 
DANTAS, S. Mulheres entre culturas e seu mundo emocional: a possibilidade de ouvir a própria voz ou o silenciar do eu. Oralidades: Revista de História Oral. Núcleo de Estudos em História Oral – USP, v. 6, jul./dez, 2009. 
GONÇALVES, C; SOUZA, C. Communication interculturelle et relation affectives au Brésil: une perspective sur les conflits. In: BIZIMANA, A; KANE, O; TRAORÉ, C. La communication, les médias et les conflits: perspectives africaines et brésiliennes. Bamako: Mali-Nouvelles Services (M. N. S), 2020. 


Catarina Gonçalves
Mestre em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social pela UFRJ e membro do Diaspotics.