Chegamos a mais um mês e com ele mais uma divulgação científica. Dessa vez, Catalina Revollo Pardo, doutora em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, apresenta-nos sua tese, defendida em 2015. Revollo foi orientada pela renomada Dr. Maria Inácia D’Ávila Neto e hoje integra o grupo Diaspotics/UFRJ, mantenedor deste site, na condição de pós-doutoranda pela mesma instituição.

Catalina
Dra. Catalina Revollo Pardo

Leia o texto da autora sobre a tese“Traduzindo testemunhos de mulheres vítimas do desplazamiento na Colômbia”:

O conflito político social econômico e armado colombiano é uma condição que a Colômbia tem vivenciado ao longo da sua história e seu território.

Os governos da Colômbia e da região têm gerado diferentes interpretações do conflito em suas perspectivas teórico-políticas, assumindo a problemática de acordo com suas necessidades e interesses, o que tem gerado uma extensa legislação que interprete e enfrente um conflito que vem mudando no tempo e entre os governos.

Sendo assim, a situação vivenciada por mais de seis décadas na Colômbia não é simplesmente um conflito armado. É mais apropriado chamá-lo de conflito político social econômico e armado, pois reduzi-lo ao “armado” leva a uma perigosa e conveniente reducionismo para setores da sociedade colombiana, abrindo caminhos para uma intervenção militar como solução mais apropriada no combate ao conflito.

Na atualidade, o conflito acontece principalmente nas áreas rurais, onde os confrontos entre os diferentes grupos armados disputam controle de terras, com a pretensão de dominar as atividades do agronegócio, mineração, tráfico e produção de drogas. As pessoas que moram nestas regiões (camponeses, comunidades indígenas e afrodescendentes), são as mais afetadas pelos confrontos com fumigações e mega projetos de exploração agrária e de mineração das transnacionais. Estas comunidades acabam sendo obrigadas a migrar para centros urbanos (ou outras regiões rurais), para garantir sua segurança.

Neste contexto, a Colômbia é um país “democrático” com uma política neoliberal e uma estratégia militar ligada ao domínio dos Estados Unidos na região. Soma-se a isso o poder político, econômico e dos meios de comunicação, que censuram e criminalizam os que não se acomodam a este sistema hegemônico. Em consequência, as iniciativas dos movimentos sociais, a esquerda, as redes comunitárias, os movimentos feministas e novas práticas das comunidades tradicionais ancestrais são vítimas da perseguição política pela máquinário armamentista colombiano, patrocinado diretamente pelo governo dos Estados Unidos.

A questão da distribuição da terra em relação ao modelo de desenvolvimento agrário estabelecido no país tem deixado efeitos negativos. Segundo Fajardo (2015), a estrutura da agroindústria se baseia nas grandes propriedades que sacrificam as terras das comunidades, o universo de pequenos produtores, camponeses e trabalhadores sem terra. Essa estrutura também está ligada à lavagem de dinheiro pelos donos das terras – narcotraficantes – paramilitares, o que incrementa a concentração da propriedade agrária aos capitais de empresas transnacionais agrícolas e de mineração.

Desplazamiento, um drama colombiano e das mulheres

A desigualdade dos ingressos e a pobreza no setor rural são fatores que os atores armados aproveitam para recrutar camponeses na suas filas. Conforme tudo que fora dito anteriormente, os camponeses são a principal vítima do conflito, vítimas dos confrontos e do desplazamiento. (Conceito que na presente apresentação manterei em espanhol pela particularidade que esta categoria tem para o caso colombiano). Hector Mondragón, diz:

“Não só há desplazados porque há guerra, se não, especialmente, há guerra para que tenham desplazados”.

O desplazamiento na Colômbia encarna uma crítica situação para a região e o mundo. Ele carrega consigo a taxa mais alta de migração forçada do hemisfério ocidental e uma das mais elevadas do mundo e é considerado um fenômeno de migração interna forçada extremadamente complexo, com múltiplas causas e várias modalidades. O desplazamiento forçado afeta todos os setores da população colombiana, predominantemente os habitantes do setor rural e áreas populares das grandes cidades, mas os efeitos são mais severos sobre alguns grupos vulneráveis, afetando de maneira diferenciada às mulheres, crianças, comunidades indígenas e afro-colombianas.

As mulheres representam mais da metade da população vítima do desplazamiento na Colômbia. Muitas assumem a manutenção total do lar, gerando estratégias de sobrevivência na economia informal e construindo redes de apoio entre a população vitimada, articulado uma luta política para reivindicar seus direitos como mulheres vítimas.

Inspirações para a pesquisa e objetivos

São as mulheres vítimas do desplazamiento, militantes do movimento de vítimas do desplazamiento, que inspiraram o desenvolvimento da pesquisa. Por meio de seus testemunhos nos chamaram a desconstruir a representação das categorias de vítimas e desplazamiento, que as mulheres têm desenvolvido na sua trajetória de luta política.

A militância empreendida pelas mulheres vítimas do desplazamiento (pelo reconhecimento, reparação, retorno e melhoria do nível de vida em seus cotidianos), está ligada aos empreendimentos na construção da memória do conflito político, social, econômico e armado, narrando o que lhes tem acontecido a elas e ao país. As mulheres são geralmente as portadoras da memória do conflito político, econômico, social e armado, argumenta Jimeno (2000), e seus testemunhos são legados na sociedade colombiana e internacional. O que me leva a realizar a seguinte pergunta: Como esta tradução representa o fenômeno do desplazamiento no nível subjetivo da experiência das mulheres, no nível sociocultural em relação aos testemunhos das mulheres com o contexto da vida da pesquisadora e no nível da abordagem desta problemática no contexto acadêmico brasileiro?

Sendo assim, o objetivo deste trabalho era pesquisar os testemunhos de mulheres colombianas vítimas do desplazamiento, desde a perspectiva da tradução cultural. Como objetivos específicos desenvolvi três níveis analíticos de tradução: (a) No primeiro nível pretendia-se traduzir a linguagem subjetiva dos acontecimentos e sentimentos narrados nos testemunhos das mulheres em situação de desplazamiento, (b) No segundo nível pretendia-se traduzir a linguagem dos diferentes códigos culturais dos testemunhos das mulheres em situação de desplazamiento e a localização da perspectiva da pesquisadora, problematizando o local do pesquisador dentro do exercício investigativo. (c) No terceiro nível pretendia-se traduzir a viagem dos testemunhos das mulheres vítimas do desplazamiento na Colômbia para o universo acadêmico brasileiro, problematizando o que implica trazer uma problemática social a um contexto acadêmico de um país diferente.

Leia também: “Migrações político-comunitárias de mulheres vítimas do desplazamiento na Colômbia”.

Leia também: “Linhas de fuga”

Para desenvolver os objetivos desta pesquisa qualitativa empírica-teórica, era relevante contextualizar em detalhes o conflito a partir de uma perspectiva crítica e, seguidamente, problematizar o fenômeno dos desplazamientos a partir do enfoque pós colonial e da crítica decolonial latino-americana, destacando a situação da mulher colombiana vítima do desplazamiento.

A trajetória teórico-metodológica desta pesquisa começa com a desconstrução do conceito do desplazamiento, problematizado por Arboleda (2007) sobre a cosmovisão do destierro das comunidades afro-colombianas do pacífico, as quais ressignificam a experiência do desplazamiento a partir de sua localização.

“Memória é um bem comum, um dever”

O processo de localização dos saberes próprios das comunidades dos territórios colombianos permite abrir caminhos reflexivos a um exercício de tradução de uma produção de conhecimento em outra lógica epistemológica. E por meio do conceito da interculturalidade, de Walsh (2002), a partir da perspectiva das mulheres vítimas do conflito. A interculturalidade forma parte desse pensamento “outro”, que é constituído de um local político particular de enunciação dos grupos subalternos.

Para analisar os testemunhos das mulheres desplazadas é pertinente contextualizar os processos do legado da memória do conflito armado, já que “a memória é um bem comum, um dever. É uma necessidade jurídica, moral e política”, segundo Sarlo (2007).

Os empreendimentos da memória sobre o conflito armado na Colômbia procuram verdades. É o caso das Comissões Históricas, dos Centros de Memória e das iniciativas das vítimas em busca de desvelar as responsabilidades da violência no país. As histórias de vida das mulheres vítimas que encontramos em seus cotidianos de militância representam o legado da memória ligados aos processos vivos e orgânicos. Pois a impureza do testemunho é uma fonte infinita de vitalidade polêmica, requer que seus detalhes não sejam esquecidos. A impureza e o anacronismo das narrações permitem entender que o testemunho não é um dado histórico verdadeiro e sólido que pretende ficar exposto num museu (SARLO, 2007). As narrativas são fluidas, subjetivas, não procuram ter uma finalidade expositiva, mas uma finalidade reflexiva. Questionam aos seus ouvintes ou leitores e geram conflito nos interesses políticos que pretendem apagá-los ou mantê-los como dados inertes.

E o local do testemunho é um caminho para a proposta metodológica da tradução, na qual se faz indispensável a problematização do local da alteridade do pesquisador em relação ao fenômeno estudado, inspiração ao trabalho de Ruth Behar (2009) em seu livro Cuéntame algo así sea una mentira, versão espanhola de Translated Woman: Crossing the Borders with Esperanza’s Story. E no legado de Homi Bhabha (2002) que nomeia o terceiro espaço.

Histórias de vida: vítimas do desplazamiento

Esta pesquisa se constituiu em dois momentos: a pesquisa teórico-metodológica e a pesquisa de campo, os quais foram acontecendo de maneira simultânea, sobretudo nos últimos anos de trabalho. As atividades de campo aconteceram entre o Rio de Janeiro e Bogotá, com membros de quatro organizações de vítimas do desplazamiento forçado na Colômbia: a Asociación Nacional de Desplazados Colombianos ANDESCOL, a Red de Maestros y Maestras Investigadores Tras los Hilos de Ananse, a Mesa de Interlocución, Gestión y DesarrolloMIGD e a Liga de la Mujer Desplazada. Trabalhei com um total de 11 mulheres vítimas do desplazamiento militantes em organizações de vítimas desplazadas, que deram seu testemunhos voluntariamente no contexto de entrevistas abertas, as quais foram registradas em formato de vídeo para facilitar a análise de dados por meio do software atlas.ti.

Nas histórias de vida, as mulheres vítimas reconstroem suas vidas com uma capacidade de agência política, mesmo no meio das adversidades do contexto local em que devem construir sua nova vida.

Nos achados desta pesquisa se observa como a reconstrução da memória das mulheres vítimas no presente as leva a processar o trauma que vivenciaram e a construir uma luta política que gera a ação e os sentimentos de uma verdade existencial, já que ser vítimas para elas está ligado à condição de suas existências (condição de vida) e não à categoria imposta pelo Estado.

Para o grupo de mulheres da pesquisa, o desplazamiento é uma categoria interessante pelo que representa nos cenários e nas trajetórias das políticas nacionais e internacionais. Ela é ligada à lógica do desenvolvimento (ESCOBAR, 2004) no sistema mundial, sendo este o que mais tem reforçado a lógica da desapropriação. A crítica ao modelo político e econômico do país desde as regiões de onde foram desplazadas e a conformação da luta popular camponesa do ponto de vista de outras perspectivas políticas, tem sido umas variáveis que as mulheres reconhecem como um fator que as levou a saírem de seus lares.

As mulheres da pesquisa estruturam sua identidade política como vítimas de maneira independente ao que o governo entende pela categoria de vítima e, especificamente, por vítima do desplazamiento. Para elas, ser vítima implica reconhecer a localização da situação das vítimas mulheres, que nas práticas comunitárias e coletivas construíram seus processos de militância, que vão reivindicar o sentido de seu desplazamiento, diante da sociedade colombiana e internacional.

Nesta perspectiva as vítimas estão mais próximas à atividade e à ação que ao conceito que a lei pretende categorizá-las. Sendo assim, as vítimas são atores políticos no contexto colombiano em processo de reconhecimento por meio de sua militância política, imprescindível em suas vidas nas periferias das cidades. Ao mesmo tempo, deixa novamente em risco iminente tal população, já que a escalada de um novo ator político no cenário colombiano não é do gosto daqueles que respondem a oposição com beligerância.

Da militância à academia

A construção da categoria de vítima é uma construção coletiva. É no plural da luta política que se consolida seu processo de militância. No encontro, na união, na luta coletiva por direitos e na construção de um país inclusivo, o qual todos os atores sociais e políticos têm participação. Militando pela iminente necessidade de uma reforma agrária e pela elaboração de uma nova constituição construída pela integridade do povo colombiano.

No dia a dia, as mulheres desplazadas lutam na integração urbana, desleal, pois não contam com a preparação demandada por Bogotá, além de não desejarem estar submetidas a uma lógica urbana não escolhida voluntariamente. O cotidiano das mulheres vítimas do desplazamiento está atravessado por muitas variáveis, as quais se relacionam aos deveres do lar e aos afazeres da militância, acumulando uma tripla jornada: a jornada laboral, a jornada doméstica e a jornada sexual, somadas ao esforço em se adaptar à cidade pela situação migratória.

A violência sexual física e psicológica sobre as mulheres é constante nos variados  contextos do conflito colombiano. As mulheres são vítimas da violência sexual em seus espaços familiares, nos confrontos, no momento do desplazamiento, nos processos de militância e no contato com a institucionalidade do Estado, na maioria dos casos operada por sujeitos machistas não preparados para a temática de gênero.

No segundo nível de tradução gerou-se a construção do vínculo entre as diferentes mulheres migrantes colombianas: as migrantes desplazadas e as migrantes acadêmicas. Este vínculo é construído na base do potencial político e emocional com o que os participantes desta pesquisa têm reconstruído a condição das mulheres vítimas do desplazamiento, no contexto da articulação dos processos de militância política que procura visibilizar a realidade colombiana a nível internacional, neste caso, na academia brasileira, com o intuito de proteger os processos políticos populares no confuso cenário do conflito político social econômico e armado colombiano.

No terceiro nível de tradução problematiza-se que a academia colombiana é uma academia de um país em guerra, atravessada por protocolos acadêmicos epistemológicos praticamente obrigatórios a se desenvolver um processo investigativo no contexto nacional, sendo difícil criar uma proposta de pesquisa fora do contexto dos estudos da violência. No Brasil a produção acadêmica sobre o conflito pode ser elaborada por outros caminhos. É a academia do país potência da América Latina, que não é ingênua ou benevolente, que fomenta o desenvolvimento destes exercícios de pesquisa para todo cidadão do mundo já que há interesse para gerar produção científica a nível nacional que some à produção brasileira no contexto científico mundial.

Para fechar este ponto é importante colocar que também existem iniciativas na atmosfera política internacionalista dos movimentos de esquerda para desenvolver estes tipos de alianças entre os movimentos sociais brasileiros e o caso colombiano. Por exemplo, o desenvolvimento na cidade de Porto Alegre no ano 2013 o primeiro Foro Internacional pela Paz da Colômbia (o segundo aconteceu recentemente).

A academia brasileira também tem acolhido o processo colombiano. Somos muitos os estudantes colombianos de pós-graduação a desenvolver mestrados e doutorados no Brasil. São muitos os professores que tem assumido o desafio de trabalhar o conflito armado colombiano, além de estudantes brasileiros desenvolvendo o tema a partir de uma perspectiva transnacional com o ímpeto de reconhecer tal problemática e buscar o apoio da região com o objetivo de enriquecer e proteger os processos do país e da região.

A tese completa você pode acessar aqui.

Catalina Revollo Pardo