Talvez você já tenha percebido que muitos dos filósofos de característica humanista apresentam em sua trajetória pessoal o traço da migração. Não estou falando do humanismo em seu termo rigoroso, do qual criticou Heidegger em sua Carta[1] ou mesmo propôs Sartre na visão sobre o existencialismo[2]. Falo de um humanismo como estado de consciência, proposta de mundo frente ao mundo marcado pela incidência da técnica e da objetividade. 

Trato também de dizer que não tenho o objetivo de produzir um recorte limitado de compreensão para colegas acadêmicos – nem limitado a estes autores -, senão tentar estabelecer uma ponte que vincula importantes questões da filosofia às experiências do indivíduo que se desloca. Afinal, esse é um dos principais recursos que alguns desses intelectuais nos oferecem: a possibilidade de migrar com eles para além de espaços físicos e incluir nessa viagem lugares oriundos da própria subjetividade.

Ou melhor, intersubjetividade, pois o inter que antecede a subjetividade aprofunda o componente relacional do conhecimento sobre o Eu. Essa perspectiva explica que não somos ou estamos sozinhos no mundo carregando uma essência imutável, mas resultamos de um conjunto de possibilidades fomentadas pelas circunstâncias que circunscrevem nossa existência. A reflexão sobre a intersubjetividade tem raízes em Alfred Schütz (1899-1959), intelectual da classe fenomenológica, de origem austríaca e migrante nos Estados Unidos a partir de 1939. Apenas cinco anos depois, ele publicou um ensaio em psicologia social sobre ‘O Estrangeiro'[3] que trata de localizar este tipo como um observador e aprendiz de um padrão de vida que não é seu, a priori, e disso ele lança mão de um paralelo entre a estrangeiridade e o método da ciência social.

É interessante observar que muitas das referências filosóficas e sociológicas sobre a migração localizam-se na primeira metade do século XX, primeiro porque era previsto um desenvolvimento geral das ciências no período, segundo porque a tragédia das guerras mundiais e a eclosão dos impérios gerou o fenômeno do refúgio em uma escala nunca antes vista. É com Hannah Arendt (1906-1975), filósofa alemã de origem judia que a reflexão sobre o estrangeiro é escrita em primeira pessoa com o ensaio Nós, os refugiados[4], publicado em 1943, ainda com a Segunda Guerra vigente. Arendt fala desse novo estatuto chamado apatridia, do “direito em ter direitos” e dessa ocasião na qual o surpreendente não é mais ser expulso de sua terra, mas ser expulso e não ter onde se abrigar.

A fotografia nos portos foi uma das formas mais eficientes e profundas de transparecer o sentimento vivido pelos tantos e tantos migrantes produzidos durante o século XX. ‘Despedida de emigrantes’ (1957). Porto de La Coruña. Manuel Ferrol.

Em um mundo objetivado pela tecnologia das fronteiras nacionais, Arendt parece trazer uma contribuição ética calcada no cuidado entre os homens oferecendo à filosofia política base para os direitos humanos e os desafios da modernidade e seus novos rearranjos étnicos e territoriais, mas não remete ao constitutivo do ser como faz Martín Buber (1978-1965), cujo pensamento é chamado pelo professor Muniz Sodré[5] de uma “antropologia filosófica do encontro”. Judeu nascido na Áustria, naturalizou-se israelita e se caracterizou por pensar e restituir uma ética sobre a realidade marcada pela vida pós-Holocausto. Uma ética, afinal, do encontro da constituição do Eu-Tu, um hífen sobre a existência pessoal que só acontece porque há um outro (o Tu) no horizonte, que permite a cada um abrir-se ao mundo e mover-se por ele em um sentido existencial. É o diálogo constitutivo de toda comunicação humana entre o Eu e o Tu que “desperta o sujeito em sua humanidade, seja qual for sua cultura”[6].

A revista de comunicação Intexto (UFRGS) publicou um dossiê sobre Vilém Flusser (1920-1991) e os autores Quiroga e Policena[6] exploraram como esse outro está presente na proposta de uma comunicação como reflexão filosófica no pensamento do autor, igualmente marcado pelo deslocamento forçado da comunidade judaica no século passado. Flusser foi um tcheco radicado no Brasil e fez o mesmo percurso que Stefan Zweig (1881-1942), por exemplo, intelectuais que colocaram em suas malas o exílio e o transformaram em produção filosófica a certeza empírica da raiz social da espécie humana, necessitada do outro para sobreviver. Embora Flusser não tenha se dedicado tanto à ética, como destacam os autores, não é possível dissociá-lo de um humanismo filosófico profundamente ético marcado pela filosofia do diálogo que Buber o inspirou.

Por fim, Jaques Derrida (1930-2004), também marcado pelo hífen identitário (franco-argelino), apresenta o notório debate ao redor de uma filosofia da alteridade e da hospitalidade como fim ético ao estrangeiro. Como base da sua ideia de desconstrução, Derrida[7] oferece o conceito audaz da hospitalidade incondicional que radicaliza a hospitalidade como uma abertura total ao inesperado, um desejo absoluto de acolher o visitante sem que este sequer tenha sido convidado. Derrida não fala necessariamente do estrangeiro como aquele que migra de outro país, mas a todo aquele que amplia a experiência da diferença, do estar alheio aos costumes e formas de pensamento local, ou que Schütz chamou de um pensar habitual.

Para além de si mesma, essa proposta irrestrita de hospitalidade é uma projeção ética para a própria filosofia, que tem como premissa a compreensão do Eu. Um Eu que, como disse, é condicionalmente relacional, dependente do outro e comprometido por toda a sua diferença trazida na mala da existência. Esses pensadores migrantes, diaspóricos, ajudam-nos a traduzir a experiência inenarrável do deslocamento como condição da própria vida individualizada. Kristeva[8], aproveitando-se de Freud, denuncia a falácia da pureza autóctone: somos estrangeiros para nós mesmos. O estrangeiro não é necessariamente algo externo, ele é algo que habita em mim, “é um fora que pode vir de dentro, que pode afetar a individualidade de cada ser”. A proposta da comunicação humana de sentido intercultural e da hospitalidade como ética é, então, mais do que uma busca por direitos porque trata justamente a relação com o outro como relação consigo mesmo, descoberta do próprio frente ao mundo. Alteridade, na verdade, é uma baita potência humana.

Referências

[1]HEIDEGGER, M. Carta sobre o humanismo. São Paulo: Centauro, 2005.
[2]SARTRE, J.P. L’existencialisme est un humanisme. Paris: Gallimard, 1996.
[3]SCHÜTZ, A. O estrangeiro: um ensaio em psicologia social. Espaço Acadêmico, n. 113, ano 10, 2010. 
[4]ARENDT, H. Nós, os refugiados. The Menorah Journal, 1943. Acesso aqui.
[5]SODRÉ, M. A ciência do comum: notas para o método comunicacional. Petrópolis: Vozes, 2014. 
[6]QUIROGA, T.; POLICENA, G. O Outro da comunicação: intersubjetividade em Vilém Flusser. Intexto, Porto Alegre, n. 51, p. 146-165, 2020. 
[7]DOUFOURMANTELLE, A.; DERRIDA, J. Anne Doufourmantelle convida Jacques Derrida a falar da hospitalidade. São Paulo: Escuta, 2003. 
[8]KRISTEVA, J. Estrangeiro para nós mesmos. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

Otávio Ávila
Editor do oestrangeiro.org e pesquisador do Diaspotics