A história de vida de Lívia é marcada pela guerra na cidade de Sarajevo, na Bósnia. Ela quis sair do seu país pelos traumas familiares sofridos na infância durante esse período atravessado pela guerra. Lívia, a mãe e sua irmã se separaram do pai durante os conflitos e foram morar na Croácia quando a capital da Bósnia, Saravejo, foi bombardeada pela Iugoslávia. Passou a infância e início da adolescência fugindo. Somente após o fim da guerra, com o acordo de Dayton, em 1995, ela conseguiu reencontrar o seu pai, que ficou em Sarajevo.

Lívia foi a única da família que saiu de sua cidade natal na fase adulta. A irmã e os pais continuam lá. “Eu tenho uma irmã e ela é mais velha. É farmacêutica e quatro anos mais velha do que eu. Mora em Sarajevo. Eu sou o único membro da família que me desloquei (risos)”. Lívia veio morar em São Paulo, após conseguir emprego em uma empresa em que trabalhou anteriormente na Bósnia

A guerra da Bósnia e e o cerco a Sarajevo. Fonte: aulazen.com

O Estrangeiro: Como foi a sua infância?

Lívia: Eu sou de Sarajevo, capital da Bósnia. Fui a mais prejudicada. Então com nove anos, virei refugiada. É quando eu, com minha mãe e minha irmã tivemos que sair do nosso apartamento porque foi ocupado pelo inimigo, pelos sérvios, pelo exército da Sérvia, que atacou a Bósnia. A gente foi para a Croácia, ficou lá cinco meses. E a gente voltou para a Bósnia, mas para uma cidade que fica na parte central. Ficamos lá dois anos, conseguindo só retornar novamente para a nossa cidade em 1994. O meu pai achou que a guerra iria acabar muito rápido, o que não aconteceu porque o conflito só terminou com a assinatura do acordo de Dayton, em 1995. E com esse documento a guerra acabou. A gente só conseguiu retornar ao nosso apartamento em 1996. Você̂ consegue ver que, dos 8 até 13 anos, a minha vida foi marcada pela guerra. E pelo fato de que a gente era refugiada. 

A minha mãe foi e o meu pai ficou, porque naquela época Sarajevo estava ocupada e fica em um vale. Então, eles praticamente fecharam a cidade e a deixaram quase que sem água, sem eletricidade, sem comida, sem aquecimento e sem remédio. E ainda “bombardeando” a cidade para matar pessoas. Não deixaram ninguém sair. O meu pai ficou lá. Graças a Deus a gente conseguiu sair. E a gente vai só se juntar novamente dois anos depois.

OE: Você̂ vê uma dificuldade dupla em ser imigrante e mulher?

L: Eu vejo como esse é meu problema, porque eu não vivi aqui, eu não morei aqui. Esse problema de ser mulher para crescer profissionalmente eu ainda não enfrentei direto. Estou vendo o caso das minhas colegas e amigas, vejo que no ambiente a situação é sempre a mesma. Não importa onde você atue.

Li um artigo que fala sobre como mulheres imigrantes têm dificuldades para se integrar na sociedade, no contexto profissional. Eu não sei. Eu não sei da vida particular. Acredito que o Brasil ainda é um país muito fechado para esse tipo de possibilidades. Acho que para pessoas que que (gaguejou). Não estou falando da experiência profissional quando você é alemão e foi transferido para atuar em uma área dentro da empresa. Eu estou falando de mulheres que são imigrantes e chegaram aqui por razões diferentes. Acho que existe um estigma para se integrar, para dar confiança para elas poderem contribuir para a sociedade. Por exemplo, não sei se você percebeu, ainda tenho o número de São Paulo, porque eu morava lá e por preguiça eu não troquei para um do Rio de Janeiro. O meu marido falou: “Você tem que mudar o seu número para o Rio, porque quando você aplica para trabalho o seu número fica lá e a primeira coisa que notam é, o ‘Lívia com J'”, já é estrangeira e não tem como ser brasileira e ainda com o número de São Paulo. Já veem que você é alguém sem conhecimento do mercado local, carioca, isso são hipóteses. 

OE: Quais são os seus planos para o futuro?

L: Ainda não sei o que quero, mas sei que quero montar uma coisa minha. Além do MBA, estou me formando no curso de guia de turismo, porque quero valorizar o meu conhecimento de idiomas. Esse será o primeiro passo. Eu completei o ensino médio. E depois decidi estudar jornalismo. Me formei em jornalismo porque sempre achei que jornalismo era “ficcional”. Mas quando comecei a estudar, eu percebi que eu não quero fazer isso. Não quero ser jornalista, e me direcionei mais para a área de Relações Públicas e Comunicação. Foi por isso que comecei a criar a minha vida nessa direção. Completei alguns cursos que me capacitaram para atuar naquela área, no mercado. E comecei a trabalhar para essa empresa que, depois de 10, não, 8 anos vai me oferecer uma oportunidade no Brasil.

Eu nunca tive nem pretensão, nem ambição em ficar no meu país, por causa dessa situação e desse trauma. E me veio hoje, depois de 25 anos do pós-guerra, praticamente o mesmo conflito físico. O país está dividido, tem umas três religiões. Temos praticamente três países dentro de um país. Essa é uma situação bem complicada, que eu acho que não é relevante para sua pesquisa. Mas acho que foi um conjunto de uma infância que foi parada em um momento. E depois uma tentativa para que eu possa criar uma vida melhor para mim. 

No final da entrevista, falamos sobre a nossa experiência intercultural e sobre a nossa situação de vida como mulheres imigrantes. A interlocutora foi bem aberta e disponível em ajudar, indicando outras entrevistadas. Não mantivemos contato depois, porque, como foi indicada por amigos, não tivemos acesso por meio de redes sociais. E a interlocutora mudou o número de telefone. Gostaria de saber se ela se estabeleceu profissionalmente e pessoalmente na cidade do Rio de Janeiro.

Catarina Gonçalves
Mestre em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social pela UFRJ e membra do Diaspotics.