As narrativas sobre as migrações muitas vezes se resumem a textos alarmistas que citam números e adjetivos que buscam chamar a atenção sobre a dita “crise humanitária”. Diante do propósito deste grupo de pesquisa de visibilizar histórias de migrantes que restituam certa humanidade à experiência do deslocamento forçado, trago uma das tantas histórias que me foram confiadas. Trazido em primeira pessoa, este relato guarda um movimento da memória que é característico de quem quer dar a conhecer sua história. Num esforço natural do recordar, parece ceder à necessidade de saltos no tempo para contextualizar certos eventos. No nosso encontro, uma única pergunta foi formulada por mim: “Qual sua história de migração forçada”? A ela, Kaha respondeu:

“Eu tinha cerca de 14 anos quando tudo começou. Já era adolescente, e por isso tenho uma lembrança clara dos fatos. Toda minha infância havia sido na Somália e lembro que lentamente o país foi ficando pior. Enquanto adolescente percebia pequenas mudanças tanto das conversas dos adultos como nos hábitos do dia a dia. Não era algo que afetasse meu cotidiano, mas era possível ver que lentamente as coisas estavam ficando mais perigosas. Por exemplo, podíamos escutar os confrontos entre a milícia e as forças do governo, quando tiros eram disparados. Também era possível perceber que a segurança para as pessoas era encarada de maneira diferente. O governo era um regime ditatorial militar liderado pelo Siad Barre, que assumiu o poder em 31 de outubro de 1969 com um golpe de estado que destituiu o governo democraticamente eleito e ficaria no poder até 1991. Naquela altura a Somália, apoiada pelo governo comunista russo, estava em guerra com a Etiópia, suportada por sua vez pelo governo estadunidense. Não era uma guerra aberta, mas havia uma disputa nas fronteiras. Lembro de ouvir os mais velhos falarem que essas alianças não eram assim tão claras e estáveis. Arbitrariamente o apoio podia mudar de campo e a Rússia, que ora era aliada da Somália, poderia se transformar em apoiadora da Etiópia. O mesmo poderia ocorrer com os Estados Unidos. Isto porque ambos os países tinham interesse em estabelecer uma presença sólida naquela parte do mundo.

A família de Kaha. Arquivo pessoal.

O recrudescimento da violência e a solidariedade

O ditador Siad Barre passou a ser extremamente duro com todo tipo de oposição. Era frequente ouvir que o governo havia prendido essa ou aquela pessoa acusada de traição. Muitos deles, líderes de oposição, acabaram sendo executados. Entre 1986 e 1988 o norte da Somália, atual Somaliland, tinha claros propósitos de se separar do resto do país. O desejo de autonomia das pessoas desse território foi alvo de violentas repressões por parte do governo de Barre. Muitas pessoas foram mortas, inclusive civis. Esse contexto gerou um deslocamento interno de pessoas que desta região buscavam proteção na capital e demais localidades, principalmente nas casas de familiares após terem seus pertences roubados e suas residências demolidas. Nesse sentido, meus vizinhos por exemplo passaram a viver com minha família cedendo sua casa a numerosos familiares que vieram em busca de abrigo. Isso foi em 1998 e progressivamente as coisas foram piorando. 

Enquanto criança, como já disse, meu dia a dia não foi impactado diretamente pois continuei a viver na minha casa com a família. Porém, era comum ouvir as histórias contadas pelos familiares, vizinhos e amigos. Lembro claramente de um episódio que chamou minha atenção. Minha família tinha um “watch man” (um guarda domiciliar noturno) que dormia na varanda e que com a ajuda de uma vara espantava aqueles mal-intencionados que queriam furtar animais ou pertences e partir ao amanhecer. Eu lembro desse homem franzino que em troca de alimento e uma pequena quantia era supostamente responsável por garantir a segurança de minha família. Lembro que foi nessa altura que as coisas começaram a mudar para nós. Meu pai trabalhava na embaixada estadunidense na Arábia Saudita. Foi transferido para lá em 1984 após anos trabalhando em Mogadishu. Minha mãe, no entanto, havia decidido permanecer no país porque dizia que Riad era horrível. A família então permaneceu rodeada de outros familiares na capital, onde as crianças puderam continuar na mesma escola. Ela também tinha seus pequenos negócios e não queria deixá-los. Nosso pai tinha o hábito de nos visitar uma vez por ano, permanecendo um ou dois meses. Voltando para a história do Ali, o watch man, que como eu disse vinha como uma vara que servia para afugentar e bater em quem se aventurasse para roubar a nossa casa, acabou sendo substituído por um familiar que trabalhava na polícia. A partir daquela noite, uma pessoa armada estava encarregada de vigiar a casa durante o período noturno. Este era mais um sinal de como a segurança no país havia mudado. Eram muitas as histórias que ouvíamos como a da família dos primos da minha mãe, que teve a casa invadida por um grupo armado que levou todos os pertences de valor. Não lembro exatamente quando foi, mas aconteceu poucos anos antes da guerra civil eclodir.

A família em movimento

Somos uma família de oito e naquela altura os dois mais velhos estavam fazendo faculdade nos Estados Unidos. O terceiro mais velho estudava em Karachi, no Paquistão, e o quarto já era casado e tinha sua própria família. Com minha mãe éramos os quatro menores. Naquele ano meu pai veio para o Natal. Trouxe passaportes e vistos para que toda a família se mudasse. Foi então que ele propôs que eu e minha família fôssemos para a Arábia Saudita por 3 ou 4 anos, quando então ele se aposentaria. Depois desse período poderíamos todos migrar para os Estados Unidos da América. Minha mãe de início havia aceitado essa proposta, mas antes que pudéssemos viajar a guerra civil explodiu. Rapidamente, os confrontos começaram a acontecer cada vez mais perto de nós. A mãe, cujo irmão era ministro do ensino superior e casado com a filha do presidente, tinha na altura informações privilegiadas. Ela de certa maneira entendia melhor do que meu pai algumas nuances do conflito e os seus possíveis desdobramentos. Ele, que sempre fora mais familiarizado com a cultura ocidental, tinha uma maneira de agir de acordo com o que podia perceber. Desde quando havia voltado de seus estudos no Iêmen, nunca havia trabalhado para o governo somali. O fato de falar arábico e somali lhe garantiu um emprego privilegiado na embaixada dos Estados Unidos. Foi quando minha mãe decidiu que todos deveríamos nos mudar para a casa de meu tio, que morava próximo da região do aeroporto. Ele, que nessa época tinha duas casas, disponibilizou uma para que nos abrigássemos juntamente com meu pai. 

Minha mãe teve a presença de espírito de dizer para o meu pai: “um de nós precisa estar fora do país!”. Isso porque, se eventualmente a família tivesse que migrar, haveria necessidade de ajuda e apoio estável. Ela então disse para ele: “você tem que ir!”. Um dos encarregados do aeroporto, que era parente de minha mãe, facilitaria o seu embarque. Enquanto estávamos na casa de meu tio as coisas seguiram piorando. Para lá levamos somente algumas poucas roupas, na esperança de que as coisas melhorassem rápido e pudéssemos retornar para a nossa casa. Passamos cerca de um mês naquela residência até minha mãe procurar seu irmão, meu tio, para acertar algumas pendências. Naquela altura, minha mãe tinha um tio que era doente mental e do qual alguém deveria assumir a responsabilidade. Ela disse para seu irmão que morava numa região ainda estável e altamente protegida dos confrontos: “você precisa cuidar do tio!”. Argumentou que para ela seria mais difícil assumir a tarefa pois tinha sua família para cuidar e provavelmente precisaria se mudar novamente junto com os filhos. 

Quando crianças, minha mãe e meu tio ficaram órfãos e foi o tio avô, irmão da minha avó materna, quem assumiu a tutela deles. Nós todos chamávamos ele de “vovô” já que era tio de minha mãe. Foi graças a ele que puderam ir para o Iêmen e fazer uma faculdade. Foi em Aden que meus pais se conheceram e se casaram e, assim que a Somália obteve a independência, se mudaram de volta para Mogadishu. 

Continuando o que dizia, minha mãe, naquela altura, tinha uma percepção mais apurada da situação política. Ela disse para meu pai: “um de nós vai ter que ir e esse é você, essa situação parece maior do que estávamos acreditando!” Nessa época minha mãe tinha intenção de mudar a família para outra região mais distante dos conflitos, numa espécie de casa de campo que pertencia a seu irmão. Ela ainda estava tentando convencer seu irmão de que precisaria acolher o tio doente, já que vivia numa situação melhor e mais privilegiada do que nós. Nessa discussão entre eles, que ainda lembro, meu tio dizia para minha mãe que ela estava exagerando, que nada aconteceria e que tudo estava sob controle. Minha mãe disse a ele que ela lidaria com sua família do jeito que achava mais prudente e que ele podia fazer o mesmo. Ela sempre foi uma mulher guerreira e de opiniões fortes. Enquanto meu pai dizia: “vamos dar um jeito nisso tudo!” ela falava: “não, você deve ir agora, assim pelo menos vamos ter recursos de fora do país!” Foi assim que meu pai seguiu num dos últimos voos para Dubai. Ela, nessa altura, tinha a idade que tenho hoje: cerca de 42 anos. 

Deslocamentos rumo à fronteira

Passamos a morar com minha família próxima nessa casa de campo e de lá minha mãe fazia visitas a seu irmão na capital. Numa dessas visitas ele disse para ela levar o tio. De início, a mãe se recusou, já que estava sem seu marido e responsável pelo filho e outras pessoas da família que haviam se mudado com a gente. Mas ela acabou aceitando o pedido do irmão, solicitando em troca dois veículos, dois motoristas e alguns barris de gasolina. Com seus privilégios, o tio conseguiu também um outro veículo que carregasse os barris. Foi assim que meu tio doente passou a estar com a gente durante o deslocamento que nos levaria para outra região mais segura. Tudo o que lembro era que eram dois enormes trailers. Em um deles estávamos nós da minha família, e no outro meu tio, bem na traseira onde colocamos víveres e animais. Ele podia se tornar violento de repente, mas no geral era uma pessoa bem calma e sorridente. Às vezes jogava coisas nas pessoas, o que tivesse pela frente. Por esta razão suas mãos eram amarradas na maior parte do tempo.

Tivemos vários abrigos durante o deslocamento para o sul. Viajamos durante a noite e fomos para outra cidade próxima da costa Kismaayo. Lá ficamos numa antiga instalação militar, num lugar que havia sido um zoológico. Chegávamos, desempacotávamos nossos poucos pertences e pronto. Por incrível que pareça, essa experiência toda não foi traumática. Sei do privilégio que eu e minha família tivemos ao longo de todo o processo. Para mim, no entanto, foi relativamente tranquilo, já que os familiares mais próximos estavam todos juntos. Éramos praticamente uma caravana.

Por um tempo, moramos numa universidade onde outro parente próximo era reitor do campus localizado na cidade de Kismaayo. Naquela altura, o local estava abandonado e fizemos das instalações nossos cômodos. Lembro que dormia no laboratório de química. Meu tio ficava amarrado à sombra de uma árvore. Como não tínhamos cozinha, as comidas eram preparadas ao ar livre numa fogueira improvisada. Um de nós era encarregado de levar comida para ele. Chegávamos a discutir entre as crianças sobre quem deveria ir, porque ninguém queria se aproximar já que não sabíamos se ele iria nos jogar coisas. Lembro que uma vez ele jogou uma pedra que acertou a panela no fogo despejando todos os guisados no chão. Meu irmão mais novo, que estava com muita fome e ficou muito contrariado, pegou algo do chão para atirar nele de volta. Foi quando percebeu que se tratava de um pedaço de carne que logo colocou na boca, mesmo com terra, ao invés de desperdiçar a preciosidade.  

Cerca de três semanas depois do início dos conflitos, Syad Barre conseguiu asilo na Nigéria e deixou o país juntamente com sua família e seus colaboradores próximos. Sabíamos que não poderíamos voltar para Mogadishu porque os conflitos tinham tomado conta da cidade. O plano era chegar próximo à fronteira com o Quênia, por isso seguimos viagem. As notícias chegavam da capital através da rádio e da movimentação de pessoas que iam e voltavam de lá.

Foi nesse tempo que vi pela primeira vez alguém morto. Era meu tio que havia tentado regressar à capital para retirar  do banco o dinheiro necessário para seguir viagem. Na tentativa, ele e a esposa, que trabalhava nesse banco e que facilitaria a entrada, caíram numa emboscada dos milicianos e ele foi gravemente atingido. Voltaram com ele e durante a noite uma tia, que era enfermeira, tentou salvá-lo. Foi na manhã seguinte que, olhando para o rosto dos familiares, percebi que algo terrível havia acontecido. Ele havia sangrado muito e morreu em decorrência da hemorragia provocada pelos ferimentos. Fiquei curiosa e quis ver o corpo que jazia numa sala coberto com um lençol. Lembro de ter levantado o lençol e alguém me ver e gritar: “o que está fazendo, sai daí imediatamente!” Ficamos por lá cerca de dois meses. 

Separações e a chegada ao Quênia

Meu pai contatou familiares que moravam no Quênia pedindo ajuda para a família. Foi acertado com um deles que era um homem de negócios o fretamento de um voo charter que levaria todos para além da fronteira. Ele também alugaria um apartamento na capital Nairóbi, onde ficaríamos até conseguir seguir para encontrar meu pai. A partida, no entanto, não se deu de imediato. Em várias ocasiões fomos até esse local para embarcar, mas aí descobrimos que havia outras pessoas antes de nós. Era um caos organizado. Havia uma espécie de ordem de partida que nem sempre era respeitado. Fato é que por algumas vezes não conseguimos embarcar. Quando o dia finalmente chegou, entramos nesse avião de pequeno porte, com dois assentos para o piloto e o copiloto. No bagageiro, que supostamente poderia levar cerca de seis pessoas, estávamos nós quinze sentados no chão, sem cintos nem cadeiras, num voo que duraria algumas poucas horas. Todos queriam deixar o país, mas nem todos os familiares conseguiram embarcar porque não tinham visto e não cabiam na aeronave. Este foi um dos momentos mais tristes, quando tivemos que separar a família. Minha mãe deu dinheiro para que seguissem de caminhão até a fronteira. Foram muitas lágrimas e decisões difíceis de serem tomadas.  O tio que foi nos buscar no avião era um homem corpulento. Nós, que chegávamos de meses de privação na Somália, éramos todos magrinhos. Eu olhava para a cena e achava injusto.

A família de Kaha. Arquivo pessoal.

Foi assim que chegamos a Nairóbi, onde vivemos por sete meses de março a outubro de 1991.  Meu pai veio encontrar a gente e moramos todos juntos nesse apartamento de três quartos com mais familiares que vinham chegando da Somália. Somente na sala eram cerca de sete adultos. Cada quarto abrigava um núcleo familiar. Minha mãe acolhia os pedidos de vários que tentavam encurtar sua estadia dando lugar para outros que vinham chegando. Havia colchões individuais que eram enrolados durante o dia e estendidos durante a noite. As pessoas passavam a maior parte do dia fora de casa tentando arrumar seu visto para deixar o Quênia e seguir para Europa ou a América do Norte.  

Para mim, naquela idade a experiência não foi muito traumática, talvez para minha mãe tenha sido mais devastadora. Claro que fiquei triste em deixar meu país, mas não vivi este tempo da minha vida como algo traumático. O interior do país é lindo, mas não dava para apreciar porque estávamos nos deslocando, aquela situação não permitia que apreciássemos essas belezas. Nós tivemos muita sorte de ter os meios para conseguir sair. Sei de muitos que não conseguiram e ficaram anos em campo de refugiados à espera de um visto para poder migrar, como minha amiga Nimoh. Mudamos para a Arábia Saudita com meu pai, que estava próximo de se aposentar e de lá seguimos para o Canadá e, em seguida, para os Estados Unidos.

As mudanças que levam a um processo de deslocamento forçado podem ser lentas e as decisões são tomadas de acordo com as informações às quais se tem acesso. Os recursos definem em parte a experiência do deslocamento e também do exílio em si.