Na minha primeira semana de estágio em um dos Centros de Agogida Integral de Inmigrantes da Cruz Roja Málaga, me disseram que um dos nossos compis era brasileiro. Um dia, quando cheguei, ele se apresentou. Quando Gael Fuladio começou a falar, notei um sotaque diferente. Nos primeiros momentos, pela forma que pronunciava as palavras, achei que ele era baiano. Mais à frente neste texto teremos uma explicação para isso.
O jovem de 25 anos é de origem congolesa e está em vias de se tornar cidadão brasileiro. Ele foi um dos entrevistados para a minha pesquisa de mestrado em andamento para o Master Erasmus Mundus MITRA: Migrations Transnationales, da Université de Lille 3. Dividimos a entrevista sobre seu projeto migratório em duas partes.
Nesta primeira parte, ele nos conta como foi sua ida da República Democrática do Congo ao Brasil e avalia sua experiência no país sul-americano. Na segunda, que publicaremos em breve, Gael narra a migração do Brasil para a Espanha, onde vive hoje, como é seu trabalho na Cruz Roja Española e quais são seus planos para o futuro.
A ida para o Brasil
Natural de Kinshasa, capital da República Democrática do Congo, Gael deixou o país em 2012, aos 16 anos de idade, por conta de problemas pessoais que o forçaram a partir. “A única solução encontrada pela minha mãe para eu sair da situação em que eu estava foi me mandar para morar com o meu tio, em São Paulo”, recorda. Ele saiu, então, de sua “zona de conforto, onde conhecia cada esquina”, como ele mesmo se referiu ao Congo, para morar em Artur Alvim, Zona Leste de São Paulo.
Sua primeira reação na metrópole brasileira, onde viveu durante cinco anos, aprendeu português e cursou o Ensino Médio, foi de fascínio: “Eu disse ‘ooohh’. Os prédios da Avenida Paulista eram como no Estados Unidos”, recorda Fuladio. A imagem que ele tinha do Brasil também era muito positiva, de um país extraordinário que via na televisão, onde coexistiam harmoniosamente pessoas de diferentes etnias e origens nacionais.

Depois de certo tempo morando com seu tio e a família dele, a tensão entre ele e as outras partes aumentou. Por conta disso, Gael saiu de casa. Após ligar para o Conselho Tutelar, o jovem, como ainda era menor de idade, foi levado para um abrigo, onde viveu durante dois anos. Como queria ter independência para alugar um estúdio e viver sozinho o quanto antes, o congolês estava procurando trabalho e, depois de trabalhar por um curto período numa rede de fast food, encontrou uma oportunidade melhor.
“No abrigo havia uma mulher que gostava de mim, do meu comportamento, Isabel. Ela me disse ‘eu vou te ajudar. Eu não sei como, mas eu vou’”, conta Gael. Até que um dia ele recebeu uma chamada de telefone e era Isabel, o convidando para uma entrevista de emprego para a qual ela o havia indicado. A vaga era em uma empresa que fabricava peças para carros.
Uma imagem negativa das pessoas de cor no Brasil
A oferta era para estoquista, pessoa encarregada de registrar entradas e saídas de produtos da empresa. Como o cargo que exigia habilidades matemáticas, na entrevista foi proposto um teste dessas competências para Gael. “Eu não me esqueço”, começa a narrar Fuladio. “Depois de eu ser aprovado, ele me disse ‘é negro, mas é inteligente’”. Apesar de ter ignorado a ofensa pelo fato de precisar do emprego, o racismo foi algo que Gael via e sentia no país.
Ele trabalhou nessa mesma empresa durante 4 anos, até deixar São Paulo, enquanto cursava a faculdade de engenharia elétrica, à noite. “Eu nunca pensei que iria sofrer racismo no trabalho, na escola, na igreja e na rua”, lembra ele. “As pessoas veem que você é negro e correm. Às vezes eu chegava em casa e me olhava no espelho, pensando: ‘o que foi que eu fiz, o que é que eu tenho? Qual é a origem disso?’”, lamenta o jovem congolês.

Para Gael, no Brasil é incutida, de geração em geração, uma imagem negativa, falsa das pessoas de cor. E essa imagem se traduz em preconceito. “No Brasil, eu tive a sorte de nunca ter sido preso ou agredido pela polícia. Acho que eles me viam diferente”, recorda ele. Entretanto, com várias pessoas, inclusive conhecidos, a realidade era outra: “vi a polícia tratar mal muitas pessoas negras”, comenta Gael.
A adoção, as redes de apoio e a ‘vida real’ do Brasil
Eventualmente, Gael foi adotado por uma família brasileira. O sotaque baiano adquirido por ele é por conta do contato frequente com a mãe, Maria Edjane de Souza, nascida no estado nordestino. Ao falar sobre a adoção, o jovem congolês tira seu cartão do Registro Nacional do Estrangeiro (RNE) da carteira e me mostra, contando que em 2022 vai ao Brasil para reconhecer a nacionalidade brasileira.

“No Brasil eu tive a sorte de ter muita gente para me ajudar, para me orientar”, lembra. “Me diziam o que era certo e errado, minha mãe me ensinou a economizar parte do meu salário, a ser responsável”, explica Gael. Entretanto, Fuladio reconhece não é essa a realidade de muitas das pessoas que vivem no país, em situação de pobreza e sem redes de apoio.
“Eu vi muito mais sofrimento no Brasil do que no Congo”, conta ele. Ele me contou, durante nossa entrevista, sobre problemas sociais que viu no país. Como tem vários amigos moradores de favelas de São Paulo e região, o jovem congolês lembra que viu casas em situação muito precária, construídas com papelão e madeira. “Eu nunca pensei que veria isso em São Paulo. Nas cidades do Congo não havia isso, só nos vilarejos sem urbanização”, lamenta o jovem.
As agruras pelas quais viu as pessoas passarem marcaram Gael. “As pessoas sofrem lá. Essa é a realidade, não foi o que eu vi no Brasil da TV. Isso acabou com os sonhos que eu tinha ao chegar”, lamenta. Mas isso não o desanimou, pelo contrário: “O que eu mais amo no Brasil é a fé que as pessoas têm em um futuro melhor, as histórias de superação que vêm disso”.
Aprendendo a lutar pelos direitos
Quando morava no abrigo para menores, Gael começou a participar de atividades com a organização Educafro, que luta pelos direitos da população negra no Brasil. “Aprendi que quando alguém não está feliz, pode protestar por uma causa. No Congo eu não podia”, me conta ele.

O ápice da sua participação no movimento negro (e migrante) foi quando teve o direito de discursar no Congresso Nacional, em 2015, indo com uma delegação de representantes da comunidade negra e migrante de todo o país. O contexto era o debate sobre o projeto de lei 2516/2015, que foi transformado na Lei de Migração de 2017 (13445/2017). Ele discursou representando os estudantes universitários migrantes e seu interesse na matéria. “Para mim, era o máximo. Como é que um simples estudante poderia fazer isso no Congo? E os migrantes? Jamais. O Brasil me deu essa oportunidade”, recorda Gael, feliz.

“O Brasil salvou a minha vida”
Ao falar sobre a relação que tem hoje com o Brasil, disse que embora o Congo seja sua primeira pátria e o país sul-americano a segunda, hoje ele se sente muito mais brasileiro que congolês. “Hoje minha única ligação com o Congo são dois irmãos que ainda estão lá, e faz muito tempo que não moro no país”, conta Gael. E completa, sobre o Brasil: “Tenho contato com a minha família e amigos brasileiros todos os dias. Eles me enviam mensagens, nem que seja para perguntar como eu estou”, ressalta o jovem sobre o carinho mútuo com as pessoas conhecidas no país.
Pergunto a Gael sobre a experiência no Brasil, de forma geral, agora que ele está longe e pode avaliá-la em perspectiva. Ao lembrar das redes de apoio que teve lá, das oportunidades de mobilização social e de estudo que teve, é categórico: “Mano Brown disse ‘o rap salvou a minha vida’. Há brasileiros que falam ‘a música salvou a minha vida’, ‘o teatro…’”. Depois de uma pausa, me olha nos olhos e diz: “No meu caso, o Brasil salvou a minha vida, tío”.
A segunda parte da entrevista com Gael Fuladio será publicada em breve.
—
João Paulo Rossini
Mestrando Erasmus Mundus MITRA: Migrations Transnationales, na Université de Lille 3