No texto de hoje trago uma indagação: a cidade do Rio de Janeiro é uma cidade acolhedora e hospitaleira? Ou será que este imaginário se encontra apenas na superfície do tecido social da cidade? O que será que os imigrantes que moram na cidade têm a dizer sobre isso? O hábito da hospitalidade está presente em todas a sociedades, desde os primórdios. Em algumas, inclusive, é considerado um dever sagrado. É a experiência do acolhimento do outro permitindo o convívio e a partilha de mundos, anseios e perspectivas diferentes.

Para nos ajudar a entender o processo de vinculação dos imigrantes na cidade, entrevistei um grande amigo de longa data, Prof. Manuel Alexandre. Manuel é angolano e está no Brasil, morando no Rio de Janeiro, há 25 anos. Ele é professor universitário, mestre em Engenharia de Transportes pela UFRJ e doutorando em Engenharia de Produção pela mesma Instituição.
Manuel começa dizendo que o Brasil não era seu destino inicial. Que quando decidem migrar, as pessoas do seu convívio têm em mente os EUA ou países da Europa, mesmo sabendo que a vinculação será permeada por muitas dificuldades e conflitos. Segundo ele, nenhum país quer receber imigrantes africanos.
Prof. Manuel Alexandre. Acervo pessoal.
Sabemos que historicamente a pluralidade e transculturalidade fazem parte da vívida dinâmica do tecido social da cidade. A diversidade faz parte do nosso DNA. Porém, de forma paradoxal, ainda nos deparamos, com indesejada frequência, com episódios de racismo e xenofobia. Para Manuel, a presença deste tipo de preconceito é velada, que por aqui as pessoas
fingem que nada está acontecendo e assim segue o baile. Demorei muito para identificar pessoas desta natureza e hoje, depois de tanto apanhar, minha margem de acerto é muito alta, ou seja, erro pouco e me afasto deste tipo de gente.
Quando chegou, Manuel, tal qual qualquer imigrante, se deparou com a força do lugar, fazendo com que ele precisasse se adaptar às leis e práticas culturais locais. O filósofo Kant, em sua obra A paz Perpétua, nos diz que a hospitalidade possui uma relação direta com a tolerância, uma vez que enquanto habitantes de um planeta com tanta diversidade, devemos aprender a conviver com o diferente. Para este pensador, todo estrangeiro tem direto à cordialidade uma vez que são coproprietários do mesmo planeta. A hospitalidade, então, está vinculada ao direito, à mobilidade e a estrangeiridade.
O pensamento de Kant me traz um incômodo. Será que os imigrantes que moram na cidade querem ser tolerados?? Creio que não. Eles não têm que ser tolerados e sim aceitos e integrados, de forma cortês, harmoniosa e orgânica. Numa entrevista concedida em 2003, o filósofo Derrida afirmou que “a tolerância é o oposto da hospitalidade ou pelo menos seu limite”. É importante que a noção de tolerância saia da equação da hospitalidade pois ela traz em seu bojo o limite, a restrição, o poder e o controle, evidenciando e legitimando a (pseudo) superioridade de quem recebe. Estas questões correm no sentido oposto ao exercício da alteridade.
Pensando em todos os conflitos vivenciados pelos imigrantes, em especial os refugiados, é possível que a hospitalidade do carioca seja condicionada a limites e controles, ainda que em muita medida inconscientes? Mais ainda, será que existe, de fato, uma hospitalidade incondicional ou ela é apenas uma utopia? Quando perguntei ao Manuel Alexandre se o Rio de Janeiro é uma cidade hospitaleira ele me respondeu o seguinte:
A cidade é hospitaleira até a página 2. Digo isso porque muitas pessoas se sentem incomodadas quando encontram algum “estrangeiro” – africano principalmente – em cargo de direção. Fica nas entrelinhas a expressão: “este lugar não é seu”. É política de Estado receber pessoas de outros países, mas nem todos os brasileiros entendem isso. Mas com todos os prós e contras vou ficando… […]. A população local (ou parte dela) sempre me considera o “outro”, ainda bem que eu nunca me enganei achando que não sou o outro.
A fala do Manuel evidencia minha clara percepção que a tão famosa hospitalidade do carioca tem um quê de “arroz de festa”. Isso é algo que devemos, com reflexões e ações conscientes, transformar. A relação dos imigrantes com a cidade deve ser pautada por uma ética que favoreceça uma vinculação que permita a chegada e permanência do outro sem reservas e preconceitos.
Mesmo após 25 anos e com família constituída por aqui, Manuel não se sente plenamente integrado. Ele nos conta que isso até aconteceu, porém, em algum momento alguém o lembrava que ele não era daqui: “aí eu me recolho e digo realmente eu não sou daqui. A família é o único motivo que me prende ainda, e para minha tristeza o tempo vai passando e eu vou envelhecendo aqui”.
Prof. Manuel Alexandre. Acervo pessoal.
A hospitalidade, como epifania, não deve levar à sujeição do outro no nosso mundo e sim o compartilhamento no nosso mundo pela perspectiva e anseios do diferente, pois aí reside a verdadeira alteridade. Contudo, infelizmente, parece que o que impera nos interstícios da cidade é o “eu egoísta”, etnocêntrico e controlador. É como se permitíssemos a entrada em nossa casa, mas deixássemos entreabertas as portas e as janelas. Sem que elas estejam plenamente abertas, cerceamos, de forma subjetiva e prática, o acolhimento, a liberdade e a circulação de formas integrais, diminuindo a potência das trocas e do pleno desenvolvimento de todos os envolvidos.
A vocação transcultural da cidade do Rio de Janeiro favorece a existência de um sistema dialógico que, apesar da inegável existência do conflito, deveria ser baseado na completa aceitação do diferente, na colaboração, na solidariedade e na ação conjunta. Afinal, todos, estrangeiros ou não, temos direito à mobilidade, à liberdade, à habitação, ao trabalho, à socialização e à manutenção das nossas individualidades. Por meio da aceitação e coabitação da diferença e da pluralidade, há a possibilidade da criação de espaços ampliados de participação, capazes de criar novos caminhos que proporcionam
a circulação de uma nova forma de ver o mundo, levando a uma melhor compreensão de si e do outro. Desta forma, haveria o convite para que todos participem de forma ativa na construção da cidade, uma vez que é no seu uso que ela é construída.
Referências:
DERRIDA, Jacques; DUFOURMANTELLE, Anne. Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida a falar da hospitalidade. São Paulo: Escuta, 2003.
KANT, Immanuel. À paz perpétua. Porto Alegre: L&PM, 1989.
