A advogada e internacionalista Carla Mustafa conversou com O Estrangeiro sobre o seu trabalho engajado em órgãos públicos e sobre a sua mais recente atuação enquanto pesquisadora das áreas de imigração e refúgio. Carla é a atual presidente da Comissão dos Direitos dos Imigrantes e Refugiados da OAB/SP e, este ano, concluiu seu mestrado na PUC-SP. Nesta entrevista, ela compartilha conosco um pouco da sua ampla experiência no que tange à questão migratória.

Acerca desta trajetória, Carla lembra que seu trabalho foi um desdobramento da sua atuação enquanto advogada, mas também foi um reflexo pessoal. “Minha família é composta por migrantes, e tem um histórico de processo de integração aqui no Brasil. Meu pai nasceu em Angola e é português, minha mãe é brasileira, o pai dela é libanês e a mãe dela é marroquina. Dentro da minha família tem uma grande diversidade, e isso também, de certa forma, inspirou essa vontade de trabalhar com o tema e com a questão humanitária”.

Mesmo antes de atuar diretamente na área, Carla trabalhou em um escritório onde alguns clientes eram não nacionais, e por isso era necessário lidar com questões ligadas à regularização migratória. Em 2014, ela passou a se dedicar exclusivamente à temática migratória. Primeiro, em uma experiência de voluntariado em organizações da sociedade civil em São Paulo. Depois, na orientação jurídica e na regularização migratória, assim como na gestão de projetos nas áreas de imigração e de refúgio. Além disso, atuou com estratégias de advocacy durante a elaboração e implementação da Nova Lei de Migração (2017).

Forum Social Mundial das migraçoes 2016

Em 2019, Carla passou a integrar a Comissão dos Direitos dos Imigrantes e Refugiados da OAB/SP, que inicialmente era uma comissão voltada apenas para refugiados. Como atual presidente da Comissão, ela explica que “nesta gestão, nós conseguimos a ampliação do tema. Então não ficamos restritos apenas aos refugiados e aos solicitantes de refúgio, mas aos migrantes em geral”.

Diante do atual cenário político e da crise sanitária da COVID-19 em que vivemos, Carla comenta que o principal desafio na atuação da OAB é justamente de acompanhar a Lei de Migração. “Nós já tínhamos algumas dificuldades na implementação da nova lei. Mas agora, com a pandemia, isso ficou muito evidente, principalmente a questão do acesso à saúde e a assistência social”.

No que concerne à implementação da nova lei, ela lembra que primeiro foi necessário reconhecer os direitos dos migrantes e refugiados e romper com o paradigma de segurança nacional, de securitização das migrações, que desde o Estatuto do Estrangeiro (1980), era vigente. Mas como só foi possível mudar isso em 2017, essa transição é muito recente. Logo, algumas estruturas ligadas à governança das migrações ainda seguem o modelo do Estatuto do Estrangeiro que enxerga o migrante como um perigo.

Marcha dos migrantes 2019

Nos últimos anos, Carla tem se dedicado não apenas à área profissional, mas também à pesquisa. Ela integrou a primeira turma do Mestrado Profissional em Governança Global e Formulação de Políticas Internacionais da PUC-SP, que tem como proposta justamente alinhar as questões teóricas e práticas.

“A ideia inicial da pesquisa era fazer a exposição de um novo arranjo que envolvesse diversas instituições e que privilegiasse a situação local. A minha qualificação foi no sentido de buscar formatos, inclusive redes de cidades – modelo bastante presente na Europa – que assumissem a responsabilidade de acolher e integrar migrantes e refugiados, e, obviamente, não de forma isolada. Então, que haja uma interação maior com a sociedade civil, com a academia, com iniciativas dos migrantes e refugiados, e com o setor privado”.

Na qualificação, a banca examinadora sugeriu que ela fizesse o trabalho voltado para o que estava desenvolvendo na comissão, e o tema da sua dissertação foi: “Rede de atuação multistakeholder: as considerações a partir da comissão da OAB na cidade de São Paulo”. O objetivo era mostrar como a partir de uma iniciativa local em São Paulo, foi se estruturando uma rede com o governo municipal, estadual, federal, organizações internacionais e da sociedade civil, e associações e coletivos de migrantes e refugiados. Enfim, uma diversidade de atores atuando em cooperação para desenvolver uma governança migratória local.

Reunião em setembro de 2021.

“A OAB São Paulo foi criada em 2014 e foi a primeira a ter uma comissão específica para migração, e isso foi um reflexo da situação do grande fluxo de haitianos que chegaram após o terremoto de 2010. Primeiro chegaram no Acre, e depois foram redirecionados para São Paulo”. A partir disso, foi necessária uma articulação maior entre os atores, porque quando os haitianos chegaram em São Paulo, não havia, por exemplo, local para abrigá-los. Também em 2014, surgiu na cidade de São Paulo o primeiro centro de acolhida específico para migrantes e refugiados do Brasil. Como também, surgiu um equipamento público que é o Centro de Referência e Atendimento para Imigrantes. Isso foi também reflexo de uma série de atividades propostas pelo governo federal junto à Comigrar em 2013, que discutiam como o Estado brasileiro deveria acolher imigrantes e refugiados, e como seria esse compartilhamento de responsabilidades – uma atuação conjunta do governo federal com o estadual e municipal.

Ainda em 2014, ocorreu a chegada de muitos sírios, a partir da resolução do Conare que permitiu a concessão do visto humanitário. Então, São Paulo, que já recebia migrantes e refugiados, começou a se organizar de forma mais adequada para recebê-los, e esse processo teve a ajuda importante da sociedade civil. Carla fala que a “OAB sempre teve o compromisso de defesa dos direitos, principalmente, dos mais vulneráveis, e dentro dos valores da instituição está a justiça social. Então, assim como foram várias iniciativas criadas em 2014, a comissão também surgiu. Mas também já havia uma atuação de organizações que estavam há mais de 20, 30, 40 anos trabalhando com a temática. Então, pouco a pouco, a comissão foi se inserindo. Hoje, das 26 seccionais da OAB, 3 têm comissão específica de migrantes e refugiados, uma em São Paulo, uma em Pernambuco e outra no Amazonas”.

De tal forma, a comissão vem atuando como um membro observador dentro do Conselho Municipal de Imigrantes, que é onde se implementa o plano municipal de imigrantes. Além disso, Carla conta que as atividades da OAB não são apenas de orientação dos migrantes e refugiados, mas são também de sensibilização da sociedade em geral no combate à xenofobia, ao racismo e às diversas formas de intolerância.

A comissão tem elaborado diversos cursos gratuitos para cumprir a função de conscientizar a população sobre o tema, e realizado diversos eventos. Atualmente, eles têm desenvolvido um diálogo entre as instituições, e fizeram um evento com a Polícia Federal, compartilhando os desafios dos tempos pandêmicos e do acesso a direitos. “Então, esse trabalho que a comissão vem realizando é um desdobramento de uma série de ações que começaram em 2014 e que continuam até hoje”.

Por fim, Carla diz que “obviamente ainda não estamos no mesmo patamar de outras cidades e iniciativas que acolhem imigrantes e refugiados, mas é uma luta constante. Então, quanto mais pessoas estiverem envolvidas, e principalmente, quanto mais instituições se comprometerem e compartilharem essa responsabilidade, eu acredito que isso vai colaborar muito para a integração dos imigrantes e refugiados”.