Fruto de uma luta histórica do movimento negro, o Dia da Consciência Negra, estabelecido na data de 20 de novembro, conquistou reconhecimento nacional no Brasil pela lei nº 10.639/2003 que, além de incluir a data comemorativa no calendário escolar, definiu a obrigatoriedade curricular do ensino da História e Cultura Afro-Brasileira. Em 2011, a lei nº 12.519 instituiu o “Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra” e reconheceu o valor simbólico da data, deixando a critério dos municípios a determinação como feriado. O dia 20 de novembro foi escolhido por ser a data da morte de Zumbi, líder do “Quilombo dos Palmares” e referência na resistência contra a escravidão, em contraposição ao dia 13 de maio em que é comemorada a abolição da escravatura – criticada pela falta de representatividade efetiva para a população negra. 

Deste modo, a data assinala a importância da conscientização do povo negro no que tange às suas características estéticas e culturais, transformando-se em uma bandeira símbolo de liberdade e democracia igualitária. Mais do que isso, desvela o racismo estrutural e a xenofobia velada sob os quais o chamado “povo brasileiro” foi constituído, historicamente mascarados pelos mitos da democracia racial e da receptividade à imigração, utilizados para omitir a seletividade branca e europeia, que estabelecia o migrante ideal e definia negros, índios e seus mestiços por sua inferioridade biológica. 

A data da morte de Zumbi dos Palmares, no dia 20 de novembro de 1695, foi escolhida como Dia da Consciência Negra. Fonte: Instituto Boa Vista. 

A esse respeito, Sayad (1996) nos ensina que a colonização procurou traçar uma relação de continuidade pela mutilação da história, ou seja, sua redução ao nacionalismo, e questiona quando será possível construir uma história crítica, que sintetize ao invés de silenciar os momentos anteriores. Isto porque a construção de narrativas únicas – hegemônicas – tomam como referência o estereótipo do homem branco heterossexual de classe alta, universalizando as diferentes experiências migratórias de modo a tornar invisíveis as especificidades dos demais sujeitos sociais. Nesse sentido, tenho defendido como imprescindível – tanto para a academia, quanto para a política e a sociedade em geral – a desnaturalização do ser/estar migrante, deslocando o olhar analítico para a singularidade dos sujeitos e os efeitos articulados dos atravessamentos interseccionais de gênero, raça/etnia, classe, nacionalidade etc. sobre as experiências migrantes, buscando compreender os significados e sentidos atribuídos às diversas determinações exteriores. 

Isso ganha particular relevância quando considerado que os imigrantes sul-americanos, haitianos e africanos contrariam os pressupostos históricos instituídos, evidenciando como os interesses políticos e econômicos restringem e selecionam os “estranhos invasores”, tolerados em sua invisibilidade como força de trabalho necessária, mas dificilmente integrados socialmente e culturalmente enquanto cidadãos locais. A atualização das relações coloniais se manifesta no modo como os imigrantes são convocados, definidos e incorporados pelas sociedades de destino, já que são portadores da marca gerada pela posição ocupada pelos seus países de origem nas relações internacionais: ser tratado como “representante de um lugar dominado”, associado à pobreza e a outros tantos estereótipos negativos, sujeita o imigrante à uma dupla dominação, aumentando ainda mais a sua vulnerabilidade.

Símbolo da luta contra a escravização, o racismo e a discriminação, em prol da igualdade social e da preservação das culturas afro-brasileiras. Fonte: Instituto Federal Norte de Minas Gerais.

Se o racismo estrutural cria as condições sociais para que grupos racialmente identificados sejam discriminados sistematicamente, refletir a respeito de mudanças profundas na sociedade brasileira torna-se um compromisso ético-político, enquanto o silêncio torna cada um e todos responsáveis por sua manutenção. Em um contexto que favorece o “fortalecimento de muros”, o convite que fazemos é de “construir pontes”, a partir de um reconhecimento baseado na diferença, no consenso e no respeito à “identidade humana”. Revelando o processo de tornar-se humano em constante movimento e metamorfose, compartilho a título de aquecimento o achado mais relevante das minhas pesquisas atuais, que tanto tem a nos ensinar: a ressignificação dos sujeitos migrantes enquanto “cidadãos do mundo”, que libera das amarras de pertencer a um ou a outro lugar e busca em seu agir uma prática transformadora de si e do entorno. 

Referências:

ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019. 

BRASIL. Lei n. 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm. Acesso em 18/11/2021. 

BRASIL. Lei n. 12.519, de 10 de novembro de 2011. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12519.htm. Acesso em 18/11/2021. 

CIAMPA, Antonio da Costa. Fundamentalismo: a recusa do fundamental. In: PINTO, Elisabete Aparecida; ALMEIDA, Ivan Antônio (org.). Religiões – Tolerância e Igualdade no Espaço da Diversidade. São Paulo: Fala Preta! Organização de Mulheres Negras, 2004. 

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. INSTITUTO FEDERAL DO NORTE DE MINAS GERAIS. Dia da Consciência Negra: a importância do debate racial. Notícias, 19 nov. 2019. Disponível em: https://www.ifnmg.edu.br/mais-noticias-ead/491-cead-noticias-2019/22746-20-de-novembro-dia-da-consciencia-negra-a-importancia-do-debate-racial. Acesso em 18/11/2021.

MIRANDA, Suélen Cristina de. Somos cidadãos do mundo: imigração haitiana e identidade. Curitiba: Appris, 2021. 

SANTOS, Miro. Uma reflexão sobre Zumbi e o Quilombo. Instituto Boa Vista, Conexão Boa Vista, 18 nov. 2015. Disponível em: http://www.institutoboavista.org.br/conexao-boa-vista/uma-reflexao-sobre-zumbi-e-o-quilombo/. Acesso em 18/11/2021. 

SAYAD, Abdelmalek. Colonialismo e migrações. [Entrevista a] Federico Neiburg. Mana: Estudos de Antropologia Social, Rio de Janeiro, n. 2, v. 1, p. 155-170, 1996. 

SAYAD, Abdelmalek. A imigração ou os paradoxos da alteridade. Tradução Cristina Murachco. São Paulo: EDUSP, 1998. 
SILVA, Vanessa Cristina Pacheco. O Dia da Consciência Negra no brasil: algumas reflexões. Revista de História Bilros, Fortaleza, v. 2, n. 3, p. 153-166, jul./dez. 2014.