
O menino congolês de 10 anos conta que é difícil fazer amigos na escola. Ele está no Brasil há tempo suficiente para falar o idioma local perfeitamente. Os poucos amigos que tem são outros refugiados que frequentam a paróquia que vai uma vez por mês para buscar a cesta básica para a família.
A menina congolesa de 12 anos diz que os colegas implicam com seus lábios carnudos. Ela é linda e seu rosto parece uma pintura. A menina diz não se incomodar com a crítica aos lábios, apenas com a dificuldade de fazer amigos na escola. “Tem gente famosa que paga para ter lábios como os meus”.
O sonho do menino é sair do Brasil. Ele quer ir para qualquer outro país. A menina sonha em voltar para a República Democrática do Congo (RDC) e ajudar as pessoas de lá. Essas histórias estão registradas na minha dissertação de mestrado sobre narrativas de infâncias refugiadas, reconhecida com o Prêmio Compós 2021. Crianças ouvidas pela pesquisa não demonstraram sentimento de pertencimento em relação ao Brasil.
Não sei descrever o que senti quando li sobre o congolês morto a pauladas. Repúdio, raiva, tristeza, desesperança podem dar uma pista. Além da dissertação, meu contato com integrantes da comunidade da RDC resultou no livro infantil “A menina que abraça o vento – a história de uma refugiada congolesa”. Nossa ideia de hospitalidade precisa ser revista, afinal, quem chega ao nosso país põe à prova nossa capacidade de receber.
O professor da UFRJ Mohammed ElHajji afirma que o problema do Brasil não é a xenofobia. Ele argumenta que a sociedade brasileira em geral é xenófila, benevolente com o estrangeiro. Mas, explica o professor, não somos benevolentes com qualquer um. Somos seletivos. Apenas o rico, o branco, o europeu e o norte-americano podem entrar. Tudo depende do lugar de origem, da condição social, do gênero, da religião. Abominamos o negro, o pobre, o latino de fenótipo indígena.
ElHajji é marroquino. Chegou ao Brasil há quase três décadas para cursar o mestrado. É pesquisador renomado na área de migração transnacional e desafia seus alunos a refletir sobre a subjetividade do sujeito migrante. Nosso problema, segundo ElHajji, é o racismo histórico constitutivo do imaginário social nacional.
Ao se referirem a Moïse Kabagambe como angolano, seus agressores deixam claro que não importa sua origem. Moïse não era um dos nossos. Era de fora. Era o Outro. E era duplamente minoria: migrante e negro. Não era minoria apenas em número, mas por sua condição social e política, que o relega a uma situação de subalternidade. Está aí a receita perfeita para variadas formas de discriminação, racismo, opressão, xenofobia.
No sábado (5/2), houve uma manifestação por justiça organizada por entidades que representam migrantes e negros em frente ao lugar onde a barbárie ocorreu, no Rio, e em outros estados. Pesquisadores do Grupo Diaspotics estiveram no ato e deram um depoimento sobre o que viram lá, que pode ser lido abaixo.
Resta saber o que vamos fazer depois com essa comoção coletiva de repercussão internacional. Não se trata apenas de buscar mudanças políticas e jurídicas. Trata-se também de uma agenda social porque, mais uma vez, falhamos todos. Seguimos adotando formas arcaicas, cruéis e selvagens de violência contra o Outro.
Depoimentos de pesquisadores do Grupo Diaspotics sobre o ato pedindo justiça por Moïse Kabagambe em 5/2:
“O ato consistiu em uma aproximação importante entre a comunidade de imigrantes/refugiados com os movimentos negros (estes que têm sólida participação na conjuntura social. Falo isso especialmente pela cidade do Rio com suas persistentes violações de direitos humanos). Acho que o caso violento e cruel apresenta uma oportunidade para que os migrantes possam também se organizar e conseguir mais apoio político para sua organização política em busca de direitos”. (Otávio Ávila)
“A manifestação, através de falas potentes, cobrou punição aos responsáveis pelo bárbaro assassinato do jovem Moïse, denunciou o racismo estrutural e a xenofobia presentes em nossa sociedade e contou histórias de vida invisibilizadas em nosso país. Um ato fundamental, que uniu distintas comunidades migratórias e os movimentos pretos, para cobrar políticas públicas de inclusão e combate ao preconceito”. (Sidney Dupeyrat de Santana)
“A morte de Moïse foi um ponto de inflexão da minha vida. Chega de ser espectador. Mais um assassinato dos muitos que ocorrem no Brasil, principalmente para a comunidade negra. Ainda está na minha memória continuar lutando pela morte de João Alberto Silveira Freitas no supermercado de Porto Alegre. Aí eu ia descobrir que as mortes de negros nos supermercados eram “algo comum” no Brasil. Esse “algo comum” é intolerável. Moïse também era um migrante como eu… e eu não queria ficar parado. A questão havia exasperado meus colegas da Especialização em Direitos Humanos da UNILA e depois foi debatido que os representara. Por outro lado, meus pares, os migrantes de Curitiba, também ficaram magoados com o que aconteceu. Conversamos entre alguns de nós que estamos sempre ajudando-nos, auxiliando-nos em caso de emergência, ou com a chegada de um “novo”. Somos um grupo que se une quando uma necessidade o exige há 5 anos. Resolvemos dar um nome ante a morte de Moïse, formamos o MER: Coletivo de Migrantes, Exilados e Refugiados – Curitiba. Foi assim que eu representei esses dois grupos no evento no posto 8 da praia na Barra da Tijuca. Lá também encontraria outros colegas que nunca tinha visto pessoalmente, mas com quem me sinto muito identificado, os pesquisadores do Diaspotics. Eles estavam esperando para me acolher em todos os sentidos: como colega, como migrante, apenas por ser uma pessoa. A melhor forma de homenagear a morte de Moïse é agir e continuar participando para que casos como o dele não se repitam. Vamos evitar que amanhã seja qualquer um de nós”. (Álvaro M. Pino Coviello)
“O ato no quiosque Tropicália reuniu migrantes, refugiados e movimentos sociais, e expressou uma tentativa de elaborar o trauma coletivamente. Diante do horror que tirou a vida do jovem trabalhador congolês Moïse, sustentado e banalizado por discursos racistas, é esperado que o ato reflita em justiça. Que a sua família possa escolher onde e como viver o luto, e que a memória de Moïse permaneça viva para evitar que casos como esse se repitam”. (Daniela Nigri)
