Fernanda Paraguassu é jornalista, escritora e integrante do grupo de pesquisa Diaspotics. Recentemente, concluiu o Mestrado em Comunicação e Cultura na Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde realizou uma pesquisa sobre crianças refugiadas. A dissertação “Narrativas de Infâncias Refugiadas: a criança como protagonista da própria história”, inspirada na criação do livro infantil “A menina que abraça o vento – a história de uma refugiada congolesa” (Editora Voo) e produzida ao longo do curso sob orientação do professor Mohammed ElHajji, conquistou o prêmio Compós de Teses e Dissertações no quesito Melhor Dissertação 2021. Através dessa pesquisa, que além da dissertação premiada deu forma ao podcast “Narrativas de infâncias refugiadas” e ao video de mesmo nome, Fernanda buscou refletir sobre a percepção da criança refugiada em relação ao processo migratório. Na entrevista, a pesquisadora, agora doutoranda na UFRJ, conta mais sobre a investigação que envolveu observação empírica em abrigos de refugiados venezuelanos em Roraima e pesquisa qualitativa com crianças refugiadas da Venezuela e do Congo no Rio de Janeiro.
Confira a entrevista:
O Estrangeiro: Sua dissertação trata das migrações, mas sob o olhar da criança, o que significa uma ruptura ao trato majoritariamente adultocêntrico desses estudos. Que ensinamentos as crianças oferecem ao nosso entendimento sobre as migrações transnacionais?
Fernanda Paraguassu: Assim como acontece com os adultos, as migrações causam uma ruptura importante na vida das crianças. Poderíamos pensar que, por terem menor bagagem emocional, seria mais fácil para elas se adaptarem ao novo espaço cultural, social e simbólico. Mas o fato é que as crianças não são esponjas sempre prontas para absorverem o novo. Precisam de apoio e acolhimento. Minha pesquisa de campo foi dividida em dois momentos da criança refugiada no Brasil. No primeiro momento, observei os passos do pequeno migrante que chegou por terra, cruzando a fronteira em Pacaraima (RR). No segundo momento, no Rio de Janeiro (RJ), realizei uma atividade de colagem que criei para oferecer um lugar de escuta à criança. Chamei de conversa vinculativa, porque precisava estabelecer um vínculo, um determinado nível de confiança para ela me contar suas histórias. O objetivo da atividade era construir seu novo lar, selecionando elementos para colar numa casa de papel. Ali a ruptura ficava bem clara com o “aqui” e o “lá”. Era possível observar também a memória de um passado recente sendo reconstruída aos poucos, entremeada por encantamentos e também estranhamentos com o novo país.
OE: Como foi visitar um abrigo de refugiados venezuelanos? O quão complexo é para um pesquisador ir até esse lugar, que é um lugar de passagem, de controle, mas ao mesmo tempo de moradia para milhares de pessoas?
FP: Quando me preparei para a viagem, evitei criar pautas definidas para não prender meu olhar e deixar de enxergar coisas importantes que pudessem me surpreender. No entanto, quando você entra num lugar desse cheio de teoria na cabeça sobre identidade, interculturalidade, integração…, a tendência é tentar encaixar tudo aquilo que você leu nas cenas que passam ali. Mas é muita informação, são muitas histórias e você quer observar tudo, não quer perder nada. Então vem a necessidade de ter um foco. Nos abrigos em Boa Vista, participei de algumas visitas guiadas e tentava sempre direcionar meu olhar para as crianças. Muitas vezes nosso olhar se cruzava e aquilo me prendia por alguns instantes. Aquele olhar virava o ponto inicial para uma observação mais ampla e dali saía o registro de uma cena. Outras vezes a criança nem se dava conta da minha presença. E esse era outro motivo que também me chamava a atenção, ou seja, ela conseguia se abstrair daquele vaivém e ficar num mundinho só dela. Em Pacaraima foi diferente. Consegui ficar um tempo circulando por ali sozinha, com autorização das autoridades, claro, daí aos poucos era como se eu fosse treinando meu olhar para capturar as cenas. No fim da viagem, eu tinha um monte de informação e o desafio seguinte foi definir como usá-las da melhor maneira possível.

OE: Sua pesquisa foi muito elogiada na banca e acabou de receber o prêmio da Compós de melhor dissertação de mestrado em Comunicação (ano 2021). Qual novidade você crê oferecer para as pesquisas na área?
FP: A primeira novidade para a área de Comunicação foi a forma de construir a dissertação e tentar me distanciar da estrutura padrão de texto acadêmico, mantendo o rigor das informações. Além do texto autoral, costurei teoria e prática, entremeando com histórias infantis que criei a partir do material que coletei durante a pesquisa. Como a defesa foi remota, por conta das restrições relativas à pandemia de Covid-19, aproveitei para fazer um vídeo, cheio de imagens para deixar a narrativa mais atraente. O vídeo acabou sendo uma forma de divulgar o trabalho, levá-lo para outras áreas e também para fora do ambiente acadêmico. O objetivo é chamar mais gente para o debate, ampliar a discussão, conhecer outros pontos de vista. Sobre a área da migração, gostaria que meu trabalho pudesse contribuir com outras disciplinas que estudam o acolhimento de crianças refugiadas nas escolas. A falta de informação sobre o refúgio ainda é um grande obstáculo e é preciso preparar não apenas professores, inspetores, mas também os alunos. Nesse sentido, acredito muito no poder da literatura de despertar empatia. Por isso, criei as histórias infantis que costuram meu trabalho com base nos depoimentos daquelas crianças. São todas histórias em que o protagonista é real. Suas histórias podem até ser meio surreais (risos), porque meu objetivo não era buscar a verdade essencial, mas oferecer uma escuta sensível. Acho que nossa área nos permite inovar. Temos que aproveitar isso.

OE: Como foi seu trabalho com o Prof. Mohammed ElHajji?
FP: O prof. Mohammed ElHajji foi um excelente orientador, bastante rigoroso, ao mesmo tempo muito receptivo com minhas ideias. Foi ele que me ajudou a construir o problema da minha dissertação, porque eu estava um pouco perdida no meio de tanta leitura e aflita para definir logo meu ponto de partida. Ele entendeu minha apreensão e minha pressa (risos). No fim do primeiro semestre, conversamos numa manhã, em frente ao Cópia Café, na UFRJ. Ele me lançou um monte de perguntas sobre meu projeto, a maior parte eu não sabia responder, mas fomos refletindo juntos. Saí dali com meu “problema” definido. Foi um alívio, porque a partir de então eu tinha um foco maior para as leituras. No ano seguinte, depois de registrar tudo o que tinha apurado, o prof. Hajji deu sinal verde para eu virar meu texto de ponta-cabeça e isso me deixou mais à vontade para construir minha linha de pensamento com mais propriedade. Enfim, essa relação de confiança do orientador com o orientando também é muito importante. Eu me senti livre para fazer o meu trabalho, ao mesmo tempo, segura por estar num caminho sólido e coerente, sob a supervisão dele.
OE: E como foi sua experiência com o grupo Diaspotics, da UFRJ? Onde vamos bem e onde ainda precisamos avançar?
FP: A convivência com pessoas de outras áreas dentro do grupo Diaspotics foi muito produtiva e segue sendo agora no Doutorado. A Comunicação é uma área transdisciplinar e tem elementos muito ricos para dialogar com outras áreas, como a Psicologia Social e a Educação, que são o caso do nosso grupo. Interessante que, em nossas conversas, não há essa barreira para as trocas entre as áreas, e esse é um ponto muito positivo. O grupo também é bastante ativo, engajado socialmente e isso traz aspectos da realidade para o debate, não ficamos numa discussão descolada da vida real do migrante, apesar de estudarmos a subjetividade. Podemos avançar, talvez, em trazer mais graduandos para o grupo ou em levar o tema até eles. Apesar de o tema da migração ter cada vez mais destaque na mídia, há um certo desconhecimento sobre o que se pesquisa de fato na área de Comunicação e Cultura em relação ao tema da migração.
OE: Focando na parte teórica, por que a migração é um fenômeno histórico irreversível? Esse ponto interessa, particularmente, pois seu público-alvo era de crianças. Elas sentem a trajetória migratória, a ponto de conseguirem dimensionar como era lá e aqui?
FP: Meu contato foi com um grupo de sete crianças a partir de seis anos de idade. Minha pesquisa não teve a intenção de generalizar a condição da criança refugiada, mas apresentar um pequeno retrato de situações individuais com traços coletivos. Com isso, a ideia foi chamar a atenção para a ocorrência de determinadas situações, que podem vir a se repetir com outras crianças. O importante neste trabalho é que essas situações foram sinalizadas pelas próprias crianças e não por seus porta-vozes. Com todas as sete crianças, foi possível observar em sua narrativa a ruptura de laços afetivos e simbólicos. Algumas delas já estavam no Brasil há mais de um ano, outras tinham chegado há alguns meses. “Aqui” e “lá” estavam em vários momentos do resgate da memória, mesmo que já misturados, “não sei se foi aqui ou lá”. Um outro momento em que ficou evidente essa dualidade foi quando escolheram as bandeiras para colar no papel. Todos escolheram a bandeira de seu país de origem. Depois a bandeira do Brasil também foi selecionada. No entanto, dois meninos que disseram não gostar da escola foram resistentes a pinçar a bandeira brasileira. Ou seja, a falta de acolhimento na escola parece ter tido efeito direto no sentimento em relação ao país local. A tristeza expressada por um desses meninos era tanta que ele queria mudar de país. Como sabia que não podia voltar para seu país de origem, ele dizia querer ir para qualquer outro. Isso também chamou a atenção, afinal, não se integrar à escola levou a criança a querer sair pelo mundo. Daí eu questiono se a tal errância a que o migrante está condenado, como diz Julia Kristeva, também se aplica à criança. Talvez sim, já que também podemos tratar de uma errância subjetiva.

OE: Que outras teorias você destacaria na sua pesquisa? Algumas são mais evidentes, como a noção de comunicação intercultural, estrangeiridade e fronteiras. Você pode falar um pouco sobre elas?
FP: O encontro de culturas é um tema inevitável no estudo das migrações, assim como a errância e os estigmas relacionados aos estrangeiros. A fronteira é outro tema com muitos aspectos subjetivos, porque pode tratar de muros visíveis e invisíveis. Aliás, muros invisíveis podem ser ainda mais difíceis de serem atravessados. Na minha pesquisa, tratei ainda do conceito de infância, porque há várias infâncias. Ser uma criança refugiada no Brasil não é a mesma coisa que ser uma criança em condição de refúgio na Jordânia. Assim como ser uma criança num abrigo em Pacaraima não é o mesmo que ser interiorizada no Rio de Janeiro. Dentro do abrigo de Roraima, você ainda encontra um ambiente cultural de certa familiaridade, apesar de toda a incerteza em relação aos próximos passos. Por exemplo, os cartazes estão em espanhol, a comida chega até eles, o serviço médico, a organização do local da brincadeira. Depois de interiorizados, eles ganham uma certa liberdade de circulação, mas perdem esse “refúgio” simbólico. Portanto, foi muito importante conceituar a infância neste trabalho para compreender que, mesmo tendo várias infâncias, elas apresentam um eixo em comum, que é a busca pelo acolhimento com afeto.

OE: Que dicas você daria para uma família que migra com crianças? Como fazer do percurso do deslocamento um ambiente pelo qual haja mais ganhos do que perdas?
FP: Depende da situação em que foi feita a migração. Há diversas iniciativas não governamentais para acolher famílias em situação de vulnerabilidade, em especial, com crianças. É preciso levar em conta também que não basta dar assistência à criança, tem que cuidar de todo o núcleo familiar que está com ela. Afinal, a família precisa funcionar ou a criança corre o risco de ter um papel de maior responsabilidade antes da hora adequada. Alguns centros de assistência fazem isso, como a Cáritas e o Centro de Atendimento aos Refugiados, ambos no Rio de Janeiro. Enquanto o adulto faz uma aula de português ou recebe algum tipo de orientação, por exemplo, as crianças estão em atividades recreativas. Esses centros acabam sendo também um lugar para fortalecer laços afetivos entre pessoas que estão nas mesmas condições e construir redes de apoio. Se a migração se der numa situação um pouco melhor, é interessante pesquisar um pouco sobre o lugar para onde você vai, porque o medo do desconhecido pode causar muito sofrimento. De qualquer forma, é difícil contabilizar perdas e ganhos porque até isso é relativo. Conheci meninas venezuelanas que estão muito bem aqui no Rio, têm professores que ajudam com o idioma, fizeram amigos e ganharam um quarto só para elas. Mas também conheci meninos que só querem jogar videogame em casa e detestam a escola porque dizem que não têm amigos. Acho que isso nos dá uma pista.

OE: Você retomou sua vida acadêmica depois de anos dedicados ao mercado. Que dicas você daria aos novos pesquisadores para fazerem da sua pesquisa um instrumento de transformação social?
FP: No momento da criação do projeto, você precisa refletir sobre de que forma seu tema pode ajudar a transformar realidades. Se você não conseguir a resposta, melhor pensar um pouco mais para saber se está no caminho certo. Precisamos tentar aproximar a academia das atuais demandas sociais, que são bem amplas. Não estou falando em preparar para o mercado de trabalho. Isso é outra coisa. Eu me refiro a direcionar o olhar da academia para refletir sobre o caminho que estamos percorrendo. Esse é o papel das universidades, principalmente na nossa área: ensinar a pensar. Parece pouco? Vivemos uma fase turbulenta, de crise econômica, política e social, no meio de uma pandemia. É preciso unir forças para a engrenagem voltar a funcionar, e a academia não pode ficar de fora. Pelo contrário, ela é fundamental para tirar a gente do buraco. É preocupante quando você lê que um relatório da OCDE revela que a maioria jovens brasileiros não consegue diferenciar fato de opinião. Isso é muito sério, ainda mais no momento atual.