Em agosto de 2017 um refugiado sírio foi agredido na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, enquanto vendia esfihas e doces sírios. O agressor, um homem não identificado que portava dois pedaços de madeira, aparecia nas imagens gritando para o refugiado deixar o país, dizendo que não deveríamos deixar “homens bomba” entrar no Brasil.
Em agosto de 2019, próxima à ponte da Vila Guilherme, no bairro do Pari em São Paulo, três bolivianos foram baleados enquanto participavam de um ensaio com músicas e danças típicas de seu país, dois deles morreram.
Em maio de 2020, João Manuel, angolano que trabalhava como frentista em São Paulo, foi morto e outros dois conterrâneos ficaram feriados após serem esfaqueados em Itaquera, Zona Leste de São Paulo, por um auxiliar de mecânico que não concordava que migrantes tivessem acesso ao auxílio emergencial oferecido pelo governo brasileiro durante a pandemia de Covid-19.
Em novembro de 2020, dois migrantes angolanos foram espancados e arrastados para fora de uma revendedora de bebidas na cidade de Maringá, Paraná, pelo segurança da loja. Segundo os migrantes, as pessoas que estavam na revendedora diziam “seus folgados, “haitianos”, voltem para a terra de vocês”.
Em dezembro de 2020, a migrante Togolesa Falilatou Estelle Sarouna, vendedora ambulante de roupas no bairro do Brás, em São Paulo, foi detida, injustamente, por supostamente fazer parte de uma quadrilha que, segundo o Ministério Público, praticava “estelionato sentimental”. Após meses de intensa mobilização de redes de apoio a migrantes e coletivos de migrantes, ela foi liberada da Penitenciária Feminina da Capital paulista.
Em janeiro de 2022, o refugiado Congolês Moïse Kabagambe, 24 anos, foi brutalmente espancado até a morte, após reivindicar o recebimento de diárias de trabalho não pagas em um quiosque na praia da Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio de Janeiro. A triste coleção de agressões a migrantes e refugiados (em sua maioria pessoas negras), não permite considerar o revoltante caso de Moïse como algo isolado. Infelizmente, acima está apenas uma pequena seleção de casos recorrentes no Brasil e que, mais do que alertarem para o risco de morte e violência, apresentam um campo muito mais amplo sobre experiências de vida na precariedade.

Durante uma pesquisa de campo realizada em 2019, em uma instituição que presta serviços de apoio a migrantes e refugiados em São Paulo, chamava a atenção as múltiplas camadas de vulnerabilidade vividas por grande parte da população migrante e refugiada no Brasil. Camadas, essas, que perpassavam desde racismo e xenofobia, angústia e ansiedade, até a dificuldade para a moradia e trabalho. Distante de um imaginário clássico da migração, ancorada em uma perspectiva de progresso e melhoria de vida da condição do migrante à medida em que os anos passam, o que se observava parecia informar para um outro vocabulário político. Um vocabulário que não remetia a noções como: integração, estabilidade, melhoria, garantias. Ao contrário, os dilemas e dificuldades enfrentados pelos migrantes e pelas instituições de apoio pareciam fazer mais sentido em palavras, como: provisoriedade, contingência, incerteza, retrocessos, eventualidade e o caso de Moïse é emblemático nesse sentido.
Moïse chegou no Brasil em 2011, após sua mãe fugir dos violentos conflitos armados na República Democrática do Congo, sua terra natal. Moïse cresceu e estudou no Brasil, falava português muito bem, tinha amigos brasileiros e representava, quando visto sob esse aspecto clássico da migração, a imagem de um refugiado integrado, protegido internacionalmente, longe dos “fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas” (Lei do Refúgio, 1997)* e cuja vida, aos poucos, tendia a melhorar e se estabilizar. Entretanto, não foi esse o destino reservado a ele.
Moïse e sua família passaram por lugares precários da cidade do Rio de Janeiro, assim como grande parte de conterrâneos congoleses, assim como boa parte dos migrantes, seja no Rio de Janeiro ou em outras cidades brasileiras. Não possuía emprego formal, tendo no trabalho temporário ou pago em diárias uma das possibilidades de renda. Durante um ano acompanhando entrevistas de emprego entre migrantes e empregadores nessa instituição de apoio a migrantes mencionada anteriormente, cujo objetivo era justamente tentar promover o acesso ao mercado de trabalho formal e digno, era recorrente a pergunta por parte do empregador: “Você já trabalhou no Brasil?” (com a carteira de trabalho do migrante em mãos e desconfiado por não enxergar qualquer registro de trabalho ou ao ver os registros dispersos no tempo). A resposta era quase sempre a mesma: “Sim, mas era trabalho de “bico””, ou seja, sem registro, temporário, incerto, provisório, mal pago. “Bico” era uma palavra que rapidamente o migrante aprendia a dizer e entender seu significado. Significado, esse, que transcendia o sentido linguístico literal ou uma questão estritamente ligada ao trabalho. “Bico” transformava-se em uma espécie de representação cotidiana, um alargamento de seus significados para várias esferas da vida.
Ao cruzar a fronteira do Estado Nacional, torna-se “migrante” e “refugiado”. Uma condição que condensa diferenças, potencialidades, qualidades em torno de uma identidade política e social. Em outras palavras, tornar-se migrante ou refugiado, implica tornar-se um ser coletivo, visto sob uma lógica de “externo”, “estrangeiro”, “anomalia”, alguém fora de seu lugar. Torna-se o que a sociedade receptora espera de você, os lugares que reservam para você, os empregos aos quais tem direito (bicos ou empregos mal remunerados). Torna-se um “congolês”, um “africano”, “boliviano”, uma pessoa ontologizada (Cacho, 2012), lida socialmente através de identidades mais amplas (migrante, refugiado, negro, mulher) e que confere uma condição de subalterno, aquele para servir, para satisfazer as necessidades dos “superiores”.
A corpos como o de Moïse, o Brasil sempre reservou a subalternidade. A história brasileira nos ensina que os corpos africanos só foram bem-vindos quando esvaziados de humanidade e, portanto, passíveis de submissão à toda sorte de exploração física e mental. A partir da abolição da escravatura, corpos negros foram precariamente inseridos e postos à margem da sociedade industrial que aqui se consolidava. Entendidos como a personificação do perigo, práticas e corpos negros foram criminalizados no Código Penal de 1890. Sua primeira inserção como parte da sociedade foi pautada pelo entendimento de que esse corpo demandava controle. Ancoradas no racismo científico e visando o branqueamento da população, as políticas migratórias implementadas nesse contexto negavam a chegada de pessoas vindas do continente africano, porque a presença de corpos negros era a causa do atraso brasileiro no caminho do desenvolvimento e de sua consolidação como nação (Seyferth, 2002).
Assim, a Moïse foram atribuídos os estigmas históricos que marcam os corpos africanos no Brasil e que lhe tornaram “o outro”, aquele que não faz parte. O estabelecimento desses estigmas não se dá via atribuição, mas por meio das relações; pois a depreciação e a inferiorização do estigmatizado só são possíveis mediante determinação daquele que corresponde à norma (Kilomba, 2020). Tais classificações sociais resultam em hierarquias que, por sua vez, determinam lugares e papéis sociais. Visto, percebido e inserido socialmente a partir da diferença em uma sociedade racista e xenófoba, o existir de Moïse foi inferiorizado e sentenciado ao trabalho precário, à negação de humanidade, às margens da sociedade e, por fim, à morte violenta e brutal!
Nesse sentido, não se trata exatamente de uma exclusão, mas de uma inclusão desde que respeitados os limites da condição de inferioridade, o que Espiritu (2003) e Mezzadra e Nielson (2014) denominam de “inclusão diferencial”. Nesse processo, a fronteira do Estado Nacional passa a ter, ao menos, dois significados: i) material, ou seja, um dispositivo que demarca espacialmente a transição dessa “inclusão” através de objetos e sujeitos como: postos de fronteira, aeroportos, polícias de fronteira, campo de refugiados, regularização de documentos. ii) sentido simbólico, pois a fronteira não fica para trás, mesmo quando o migrante e refugiado estão a quilômetros de distância. A fronteira se inscreve no corpo como um testemunho vivo e inescapável. Opera como “testamento” dessa inferioridade. Como consequência, tanto a fronteira, como o corpo mediam as relações cotidianas, dão sentido a determinadas práticas, possui papel decisivo nas formas como os encontros podem transitar entre solidariedade à violência. Em outras palavras, estar em uma posição material e simbólica de marginalização é o que amplifica a possibilidade das “exceções” se tornarem “ordinárias” (Pierobon, 2018). É ter no horizonte do dia a dia o risco exacerbado da violência, de ser recusado em um emprego pela sua cor, sotaque, vestimenta, gênero, de viver de e como “bico”.
Assim, Moïse (como tantos outros) cumpria apenas parcialmente os critérios materiais e morais necessários para amplificar suas chances de “migrante ou refugiado bem-sucedido”. Faltava-lhe a cor certa, ter nascido no local certo, ter a formação educacional certa. Ao reivindicar o que lhe seria de direito, faltava o cálculo do corpo que carregava, da condição social de refugiado, de aceitar a vida de “bico” tal como ela é. Aquele corpo já tinha seus códigos históricos na formação da identidade nacional e a história não se muda assim. Como ousou Moïse sair do que era considerado “seu lugar” e “sua posição”. E ao ousar, confrontou a ordem social vigente. Ao reivindicar a remuneração que lhe cabia pelo trabalho executado, subverteu a lógica. Era um corpo negro e refugiado afirmando-se sujeito. E tal qual a história de racismo e xenofobia no Brasil ensinou, e continua ensinando diariamente, seu castigo não poderia ser outro senão aquele do linchamento, da covardia, da desumanização de quem ousou tentar adentrar, ainda que momentaneamente, o campo dos não marginalizados.
O caso de Moïse apresentou da forma mais cruel que, para grande parte dos migrantes e refugiados, assim como outros grupos marginalizados, a violência, a incerteza de terminar o dia vivo ou receber por um trabalho exercido, é rotina. Sua mãe e ele fugiram da violência em sua terra natal, ou melhor dizendo, fugiram de um tipo de violência. Mas será mesmo que um dia poderiam fugir completamente da violência? Será mesmo que um dia migrantes e refugiados pobres, negros, fugirão completamente da violência? Será mesmo que um dia aqueles que se encontram em uma posição marginal habitarão o campo da não violência e dos conceitos políticos estáveis?
Diante da barbárie, é importante atentar, por outro lado, que existem aqueles que subvertem os significados da incerteza e provisoriedade política. Aqueles que relutam em não aceitar essa posição como algo definitivo, que colocam incerteza e provisoriedade como sinônimo de possibilidade. Coletivos de migrantes, dos movimentos negros, de redes de apoio a migrantes, entre tantos outros, há décadas insistem em demarcar que provisórias e extintas não devem ser as vidas, mas a violência pelas quais se precarizam essas vidas. Insistem em demarcar que se a desigualdade é a linha neutra de base, então qualquer ganho nesse mesmo campo não vai além do que um menos desigual (Cacho, 2012) e que, portanto, é preciso levar ao extremo os debates e ações acerca de “quem”, “como” e “onde” estão as promessas da estabilidade, de direito ao futuro, de caminhos pavimentados e “seguros” rumo a uma vida digna. Casos como o de Moïse mostram que ainda há um longo caminho a percorrer, mas a indignação, a revolta, a não aceitação, as manifestações conjuntas que ocorreram em diversas cidades do país por sua morte no sábado (5/12), insistem em dizer que há e haverá luta. Há e haverá resistência. Há e haverá de ter um dia justiça para Moïse e para tantos outros migrantes e refugiados negros desse país, assim como para tantos outros que compartilham das incertezas da marginalização. #justiçapormoïse
* Lei 9.724 de 22 de Julho de 1997, que estabelece a implementação do Estatuto de Refugiado no Brasil.
Referências
BRASIL. Lei 9.474 de 22 de Julho de 1997. Implementação do Estatuto dos Refugiados. Diário Oficial de 23/07/1997, p. 15822.
CACHO, L. M. Social Death: racialized rightlessness and the criminalization of the unprotected. New York: New York University Press, 2012.
ESPIRITU, Y. L. Home Bound. California: University of California Press, 2003.
KILOMBA, G. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Editora Cobogó, 2020.
MEZZADRA, S. e NIELSON, B.; Fronteras de inclusíón diferencial: subjetividad e luchas en el umbral de los excesos de justicia. In. Papeles del CEIC, vol. 2, nº 113, 2014. p. 1-30.
PIEROBON, C. Tempos que duram, lutas que não acabam: o cotidiano de Leonor e sua ética de combate. Tese. (Doutorado em Ciências Sociais) Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. p. 325, 2018.
SEYFERTH, G. Colonização, imigração e a questão racial no Brasil. REVISTA USP, São Paulo, n.53, 2002, p. 117-149.

