Os deslocamentos humanos, quando representados pelo movimento de uma câmera, tornam-se capazes de acionar diferentes processos de memória. O cinema surge então como um recurso imagético que amplia os suportes da memória e materializa novos sentidos. Logo, reunimos três curtas-metragens que dialogam questões da memória com a temática migratória e diaspórica. As obras assumem diferentes caminhos narrativos, mas têm em comum um dispositivo de busca entre sujeitos e lugares. São elas: Liberdade (2018), Nome de Batismo – Alice (2017) e Cambié su nombre y seguí hablando de ella sin que lo supieras (2015).

Tais filmes possibilitam a expressão de palavras por vezes silenciadas. Segundo Pollak (1989), essa “memória ‘proibida’ e portanto ‘clandestina’ ocupa toda a cena cultural, o setor editorial, os meios de comunicação, o cinema e a pintura, comprovando, caso seja necessário, o fosso que separa de fato a sociedade civil e a ideologia oficial de um partido e de um Estado” (POLLAK, 1989, p. 6).

As camadas de memória

Liberdade (2018), de Pedro Nishi e Vinícius Silva, foi filmado na cidade de São Paulo e trata dos encontros e fissuras na genealogia étnica do bairro da Liberdade. Nele, o espectador é apresentado ao guineense Abou, que vive há dois anos no bairro junto a outros migrantes. Ele observa que “quando as pessoas daqui falam da Liberdade, elas lembram dos imigrantes japoneses. Eles vieram ao Brasil de navio e chegaram há 110 anos atrás. Eles se estabeleceram aqui porque os aluguéis eram baratos e haviam muitos cortiços e pensões”. Ao assumir a Liberdade como um lugar do estrangeiro em São Paulo, ele reitera que apesar desse estrangeiro um dia ter sido em sua maioria do leste asiático, hoje muitos também são guineenses, haitianos, congoleses e angolanos. 

O curta tensiona o documentário e a ficção para apresentar outros personagens intrigantes, como Satsuki, uma mulher japonesa que vive na mesma pensão de Abou. Além dela, escutamos nos corredores da pensão Abou falar ao telefone com o jovem Sow que ficou preso no aeroporto, e ecoar a frase “bem-vindo, mas não é bem-vindo”.

Os três personagens entrecruzam suas experiências no filme, que propõe uma escuta à memória passada e apagada do bairro. Neste aspecto, Abou lê “em data de 23 de Julho de 1821, foi expedido um aviso ao Senado para que mandasse levantar uma forca no lugar mais público desta cidade. E que ela fosse feita de madeira duradoura, no espaço onde está hoje a Praça da Liberdade. Trecho do livro ‘São Paulo Antigo, 1911”. Isto posto, vemos que passado o tempo, na mesma região que em um passado foi conhecida como Largo da Forca, onde executaram indigentes, sentenciados e escravos, foi erguida uma igreja. 

 Em Liberdade, a narração de um migrante confronta sua própria experiência ao ser tocado pela memória do espaço em que vive. Ao analisar a reação diante de passados de violência, Jelin (2017) diz que a intenção político-estatal pode almejar uma narrativa que crie consenso sobre um evento, “no entanto, essas tentativas serão sempre questionadas e respondidas, uma vez que os processos de construção da memória estão sempre abertos e nunca terminados” (JELIN, 2017, p. 15). De tal modo, o filme retrata diferentes camadas temporais e de vida em um mesmo espaço, que disputam para que não haja nenhum apagamento. 

Narrar mundos pelo encadeamento de imagens 

Nome de Batismo – Alice (2017) narra a busca da protagonista por suas raízes ancestrais em terra estrangeira. O documentário é iniciado com uma câmera direcionada para a janela de um avião que decola de Recife em direção a Angola. Escutamos a seguinte fala em off: “queridos filhos, com lágrimas de saudade nos olhos, dia 12 de Agosto de 1978, recebemos notícias de vocês e pra nós parecia um grande sonho. Olhar para a vossa foto e ver que realmente vocês estavam vivos, era de dar arrepios!”. Anos depois, sua neta, em outro continente, vai à Angola para buscar as histórias que escutou desde a infância sobre seu nome de batismo: Alice Francis Tilovita. Sua mãe foi a única que nasceu no Brasil, da parte da família que fugiu para o país em 1976. Portanto, ela diz que “dividida entre o desejo da descoberta e a angústia de enfrentar meu próprio imaginário, sigo com minha mãe pro Bié, território Ovimbundo, local das nossas origens”.

Após a câmera percorrer o novo território e adentrar uma casa onde familiares comemoram a chegada de Alice, todos sentam juntos para ver algumas fotografias. Então, eles se arrumam e um parente fala que eles vão conhecer a região. Em todo o percurso, Alice narra suas impressões para a avó – que não está mais presente – e diz que suas outras filhas estranham ela não saber falar Umbundu. Mas como poderia saber se era praticamente proibido falar a língua dentro de casa? 

No percurso, eles param em uma Missão Evangélica, onde sua avó estudou, casou e teve filhos. Alice reflete sobre os angolanos alfabetizados nas Missões, que posteriormente lutaram pela independência de Angola. Há no filme uma busca por relatos subjetivos de familiares, além das experiências conflitantes vividas no período colonial, na declaração da independência em 1975, na Guerra Civil de Angola e nos sucessivos desenraizamentos. 

Cartaz do curta Nome de Batismo – Alice. Reprodução

As presenças ausentes 

Enquanto os dois primeiros filmes propõem interlocuções diretas com tempos passados, Cambié su nombre y seguí hablando de ella sin que lo supieras (2015) lida com as presenças ausentes de outra forma. O diretor João Solda filma em tom ensaístico a perspectiva do imigrante cubano Camilo no retorno ao seu país de origem. Ele capta rostos que sorriem para a câmera como se fosse para uma fotografia, e utiliza apenas imagens externas à Camilo. É como se a ausência dele e de todos que ele deixou ao sair de Cuba se materializasse nos rostos, não mais conhecidos, encontrados nas ruas. 

Didi Huberman (2008) discute a produção de imagens e a materialização da memória. Para tanto, é possível se referir à dupla dimensão da memória encarnada do rosto “se admitirmos, com Giorgio Agamben que fala que o ‘rosto é o único lugar da comunidade, a única cidadania possível’ (DIDI-HUBERMAN, 2008, p. 288). Pode-se compreender a produção de imagens como um ritual para acionar a memória, assim como a dimensão espectral dos corpos. No filme, esta espectralidade torna-se evidente nos rostos semi conhecidos filmados nas ruas.

Cena do filme Cambié su nombre y seguí hablando de ella sin que lo supieras. Reprodução

A câmera na mão é estrutural do filme, seja caminhando ou em um transporte. Camilo divide com seu amigo que durante anos mudou o nome da pessoa por quem era apaixonado, para continuar falando sobre ela à distância. Durante o percurso, ele expõe um fluxo de pensamentos sem uma ordem premeditada. Então, escutamos frases como: “depois de tanto tempo, sempre estou perdido, e sempre aqui me encontro, minha busca se mistura então, e o que vejo não muda, a cada rosto um sorriso. E apesar de tudo que sabemos desse lugar, eu não posso ficar longe, eu não posso esquecer, não posso me afastar”. 

Referências: 

DIDI-HUBERMAN, Georges. 2008. El gesto fantasma. Acto: Revista de Pensamiento Artístico Contemporáneo, Nº. 4, págs. 280-291 

JELIN, Elizabeth. 2017. La lucha por el pasado. Cómo construimos la memoria social. Buenos Aires: Siglo XXI Editores Argentina.

POLLAK, Michel. 1989. “Memória, Esquecimento, Silêncio”. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n.3, p. 3-15.