O espaço virtual, através das redes sociais, está repleto de narrativas, experiências de vida, relatos de viagens, fóruns de compartilhamento de conhecidos e desconhecidos – unidos por experiências semelhantes, desejos e angústias descritas e divididas. Ambivalente e paradoxal, este espaço permite a conexão instantânea e sincrônica, assim como sedimenta caminhos “eternamente” na virtualidade, congelando momentos, eventos e relatos independentes da sua atualização posterior.  Desta forma, a memória ganha uma nova forma de composição e perpetuação, e vai ao encontro das angustias do processo migratório.

Segundo Ferry1, para os gregos do tempo de Homero, o que caracterizava a morte era a perda da identidade; e sua composição passava por três pontos cruciais: a inclusão numa comunidade harmoniosa, um cosmos; a memória e, por último, a condição humana, intrinsecamente vinculada à finitude.

Assim, em uma história da Grécia antiga, Odisseu, para manter sua identidade durante sua Odisseia, recusa a oferta de Calipso, permanecendo assim mortal e vivendo uma luta constante contra o esquecimento. Ao narrar sua trajetória e se tornar conhecido por onde passava, resistindo às sereias ou enfrentando os Lotófagos, tinha como ideia fixa retornar à sua Ítaca e reestabelecer seu local no cosmos.

A Odisseia, de Homero. Imagem: reprodução

Entretanto, diferente do herói de Ítaca, os imigrantes forçados nem sempre têm para onde voltar. Desta forma, a memória se coloca como um ponto fundamental perante a necessidade de resgate identitário. Outro ponto fundamental são as informações sobre o novo lugar, que abrem possibilidades de futuro, um lugar no cosmos e a inserção na comunidade local. 

A impossibilidade do retorno ao espaço material encontra um caminho na presença do espaço virtual, que se configura como condição constitutiva do próprio processo de migração contemporânea. Isso proporciona o elo entre territorialidades, memória coletiva e narrativas  individuais e coletivas, permitindo o reconhecimento de uma nova comunidade fora do território original e auxiliando no processo de conhecimento e apropriação do novo lugar. Este espaço virtual, através de suas redes sociais, que encontram paralelo com a própria nomenclatura do mundo real e material, através de suas comunidades, redes e locais, vem sendo utilizado enquanto espaço de ancoragem real e simbólica da experiência migratória, não apenas em seus níveis sociais e políticos mas também nas dimensões estéticas e subjetivas.

Virtualidade e migração. Imagem: reprodução

Desde a saída da terra de origem, passando pela organização da “odisseia”, as análises das possibilidades de destinos, as buscas por dicas, pessoas conhecidas, grupos de semelhantes, bem como as formas de se chegar à nova terra e conseguir se estabelecer, se comunicar, achar um lugar para morar, inserir-se na nova sociedade; todas estas etapas e possibilidades são inimagináveis sem a inclusão de contatos virtuais nos tempos atuais. 

A versatilidade da Internet permite que os conflitos enfrentados no mundo material sejam traduzidos, vividos, e mesmo esquecidos no mundo virtual, superando as restrições tradicionais de espaço e tempo. Apesar da desterritorialização do corpo migrante, esse mundo virtual proporciona uma possibilidade de recomposição e redefinição das relações espaciais entre os sujeitos. Este espaço virtual ajuda a pôr em contato ao aliviar o peso do mundo real, atenuando os temores e a rigidez ligada à materialidade. Compõe-se, assim, o espaço de forma ambivalente e paradoxalmente complementar: os espaços reais começam a ser estruturados segundo a natureza abstrata dos conteúdos informativos.

Porém, a simples organização de websites ou similares por migrantes não caracteriza em si um ambiente de produção de memória coletiva e a possibilidade de apropriação.  Há de se considerar certos critérios de coesão e de identificação, troca, temporalidade dos laços criados, reconhecimento das próprias memórias como parte de um conjunto maior e representante de um locus e temporalidade correspondente no espaço material.  Estes componentes discursivos de natureza identitária e a atuação em prol da comunidade, sua representatividade e desenvolvimento social, cultural e político é parte indissociável da possibilidade de ressignificação simbólica da própria história.

Se a Odisseia contribuiu para a passagem da transmissão oral à História, os testemunhos dos migrantes contemporâneos podem reavivar as narrativas de aventuras e percalços de suas trajetórias e proporcionar o incremento das memórias coletivas a partir do confronto de depoimentos. Afinal, para Halbwachs2, só será possível a construção de um grupo identitário quando o confronto destes depoimentos permitir, mesmo com algumas discordâncias, que os pontos em comum sobressaiam, possibilitando a reconstrução de lembranças de modo a reconhecê-las.  Este importante ponto de conexão salientado por Halbwachs não se restringe apenas às memórias da terra distante de cada grupo migrante, mas se faz presente na apropriação de forma mais ampla da própria situação de ser-migrante, já que as memórias recentes dos processos de deslocamento, das aventuras e das possibilidades de inclusão no novo mundo os colocam pertencentes às memórias semelhantes e acabam ampliando as possibilidades de engajamento no novo território ao se reconhecerem diferentes e semelhantes diante do Outro. De acordo com o sociólogo francês, esse processo, entretanto, só é possível quando as memórias perpassam as barreiras dos próprios grupos individuais.

O sociólogo Maurice Halbwachs. Imagem: http://medihal.archives-ouvertes.fr/medihal-00541264

Além da possibilidade de acolhimento e rememoração, os meios digitais colocam também uma possibilidade infinita de fatos, dados, imagens, narrativas e memórias detalhadas e eternizadas na rede. Esta possibilidade se afasta da construção de identidade e pode provocar um desequilíbrio nos espaços temporais e na memória social ao dar um peso desproporcional ao passado. Baer3, em 2010, nos fez a pergunta: do que falamos quando falamos de memória? E, em seguida, comentou sobre os usos e abusos da memória: afinal, este termo expressa uma amplitude não só de significados, mas de possibilidades de problemas e identidades pessoais e coletivas, heranças e saberes culturais, esquecimentos históricos, traumas coletivos  e da própria violência social.

Desta forma, a grande exaltação do passado pode se colocar como um empecilho para a apropriação do seu lugar no mundo, ponto indispensável para a identidade do grego homérico e da humanidade contemporânea. O passado aparece de forma por vezes ambígua, e os meios digitais abrem possibilidades de resolver experiências dolorosas e recuperar imagens, ainda que distorcidas pela ação do tempo. Ao vincular a memória individual ao grupo social, abre-se também espaço para permanecer numa busca eterna de Ítaca, inviabilizando a vida nova. 

“ Vivemos hoje em uma destas épocas limítrofes na qual toda a antiga ordem das representações e dos saberes oscila para dar lugar a imaginários, modos de conhecimento e estilos de regulação social ainda pouco estabilizados. “4

Assim posto, qualquer reflexão contemporânea sobre a memória social não pode ignorar a enorme incidência das relações provenientes do espaço virtual, nem seu peso sobre a construção ou perpetuação de fatos e memórias assim com sobre a construção de narrativas anônimas.

1 Ferry, Luc, A sabedoria dos mitos gregos: aprender a viver II / Luc Ferry; tradução Jorge Bastos – {Ed. Bolso]. – Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.

 2 Halbwachs, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.

 3 Baer, Alejandro. La memoria social: breve guía para perplejos, in: Zamora, J.A.; Sucasas, A.(Eds.), Memoria – Política – Justicia. Madrid: Editorial Trotta, 2010 p.131-148.

 4 LÉVY, P. As tecnologias da inteligência. O Futuro do Pensamento na Era da Informática.Tradução Carlos Irineu da Costa. Rio de Janeiro, editora 34, 1993. p.17

Referências

BAER, Alejandro. La memoria social: breve guía para perplejos, in: Zamora, J.A.; Sucasas, A.(Eds.), Memoria – Política – Justicia. Madrid: Editorial Trotta, 2010 p.131-148.

BENJAMIN, W. (1936/1975). O narrador. In: Textos escolhidos (Walter Benjamin. Max Horkheimer. Theodor W. Adorno. Jürgen Habermas). São Paulo: Abril Cultural, p. 63-81. (Coleção Os Pensadores).

FERRY, Luc, A sabedoria dos mitos gregos: aprender a viver II / Luc Ferry; tradução Jorge Bastos – {Ed. Bolso]. – Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.

HOMERO, C. 750-650 a.C, Odisséia | Homero; tradução. Posfácio e notas Trajano Vieira; texto em apêndice de Franz Kafka – São Paulo: Editora 34, 2013.

LEVY, P. Cibercultura (1997). São Paulo: Editora 34, 1999.

LÉVY, P. As tecnologias da inteligência. O Futuro do Pensamento na Era da Informática. Tradução Carlos Irineu da Costa. Rio de Janeiro, editora 34, 1993.