Querido amigo refugiado,

Há tempos estou pensando em escrever esta carta para você. Embora seja descrita mundo afora como solidária e acolhedora, sei que sou complicada. Muitas vezes não facilito sua vida. Nesses momentos, o Cristo Redentor, de braços abertos, é apenas uma promessa não cumprida.  Ao mesmo tempo em que sou aberta, porosa, torta, diversa e polifônica, também possuo sombras que guardam um lado que pode ser cruel, racista e xenófobo. O paradoxo me permeia. Ao mesmo tempo que te convido, te rechaço.

O Cristo redentor. Imagem: FABIO MOTTA / AFP

Quando você chegou, se deparou comigo: um vivo mosaico cultural e societal, em toda minha força e esplendor. Eu lhe abraço, jogando sobre você regras, códigos e burocracia; tangibilizados na minha cotidianidade e cariocalidade.  Observo sua força e fragilidade, as referências deslocadas, quase que em completa suspensão. Na sua bagagem, além das poucas coisas (ou nenhuma), há um compartimento de memórias, que em um continuum reconhecimento-reconstrução/ ordem-desordem, guardam o sofrimento, a desconfiança, as lembranças e os afetos deixados para trás. 

Refugiados congoleses em Uganda. Imagem: Getty Images
Torcedores durante os Jogos Olímpicos do Rio 2016. Imagem: DAVID ROGERS (GETTY IMAGES)

Esse novo lugar, tão estranho, é ainda um não-lugar, e percebo em você o desejo que essa provisoriedade se transforme em permanência, permanência do corpo e do espírito. Leio nas entrelinhas dos seus movimentos um querer ficar tendo que partir e um querer partir tendo que ficar. 

Eu sei, e você também sabe, que sua nova existência e vinculação depende da gente conseguir construir um relacionamento de tal forma que eu passe a fazer sentido para sua nova vida. Eu preciso fazer parte de você, da mesma forma que você deve fazer parte de mim.

Meu amigo, a presença do seu corpo é um ato reivindicatório e de afirmação do seu direito de habitar em mim. Aprendo dia a dia que a profusão de signos, representados por todas as cores, idiomas, indumentárias e paladares que você trouxe, deve me lembrar constantemente de que as singularidades fazem parte do meu ser, do meu caráter multi e transcultural, e que são elas que deixam em alerta e êxtase os sentidos das pessoas que me habitam e visitam.

Imagem: acervo Conceição de Souza
Imagem: acervo Conceição de Souza

Por meio dos interstícios do nosso relacionamento em permanente construção e reconstrução, há a possibilidade de desbravarmos juntos novos e ampliados espaços de participação e trilharmos caminhos novos que irão nos proporcionar novas formas de ver o mundo e nos enxergar mutuamente.