Lucas Neves é fotógrafo e natural do Rio de Janeiro. Em 2021, teve uma das experiências mais marcantes de sua trajetória: esteve no Vale do Bekaa, região do Líbano próxima à fronteira com a Síria que concentra o maior número de refugiados sírios no país. Ali, ministrou um workshop de fotografia principalmente para migrantes que escaparam da guerra civil no país vizinho, iniciada em 2011 e ainda sem perspectivas de término; mas também para palestinos e libaneses.
O Líbano é um dos principais destinos para os sírios, que migram em massa desde o início do conflito armado. De acordo com o governo libanês, atualmente são cerca de 1,5 milhão de cidadãos sírios que vivem no país vizinho, 340.000 dos quais nos acampamentos disponibilizados pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), principalmente no Vale do Bekaa.
Foi ali que Lucas passou 1 mês junto aos refugiados, ensinando fotografia e aprendendo a ver o mundo de outra forma. Nesta entrevista, ele conta a experiência ao oestrangeiro.org. As imagens foram produzidas pelos alunos ao longo do curso.

oestrangeiro.org: De onde partiu a ideia de ir para o Líbano ministrar o workshop de fotografia? Outros estrangeiros estavam dando workshops no Vale do Bekaa?
Lucas Neves: A minha relação com o Líbano nasceu em 2019. Naquele ano, muitos libaneses saíram às ruas para protestar contra a grave crise econômica que se instalava no país. À distância, consegui 4 pessoas in loco para me enviar vídeos, fotos e informações sobre as manifestações. Assim nasceu o documentário “Lebanon, Our History”, disponível gratuitamente no YouTube.
Uma das pessoas que me enviou vídeos dos protestos foi o fotojornalista Roger Asfar, que, em 2021, começou a trabalhar no Vale do Bekaa com refugiados. Me interessei pelo local e quis ir, a princípio somente para fotografar, como ele. Mas, durante o processo de pesquisa, conheci a Tiffany, a atual responsável pela ONG Araqa Collective, que me convidou a ministrar aulas de fotografia de rua na região.
Embarquei para o Líbano e lá pude entender melhor a situação e como funciona o coletivo Araqa. Ele possui professores fixos e também convida profissionais externos de comunicação para ministrar workshops, como foi o meu caso. A ONG oferece aulas de fotografia e jornalismo e, geralmente, os professores são libaneses ou da própria diáspora síria.

OE: Como foi a experiência?
LN: Foi única. Por mais que eu tenha ido aplicar um workshop, fui a pessoa que mais aprendeu. Os alunos já tinham talento e olhares incríveis. O workshop foi sobre fotografia de rua, um estilo específico; e o objetivo era aprimorar o olhar deles sobre as vizinhanças e os territórios próximos.
Eles foram muito bem. Sem exceção. Uma das alunas me convidou para ir até uma escola onde ela dava aulas, dentro de um dos campos. Eu me impressionei com a estrutura. Eles são extremamente resilientes. O que a gente vê sobre essas pessoas na TV é absolutamente diferente do que a gente vê na vida real. Me despi do “Lucas fotógrafo” e me tornei um Lucas disposto a ouvi-los, a andar e conversar com eles.
Pude observar que eles, apesar do contexto de guerra na Síria, têm muito em comum com nós e não querem falar somente sobre a Síria, mas também sobre questões universais, como o ato de acampar. Foi uma experiência que mudou minha vida.

OE: Os alunos já estavam familiarizados com a fotografia? Como acha que ela influi no cotidiano dessas crianças?
LN: Sim, eles já tinham uma certa familiaridade. Na ONG, já haviam duas câmeras disponíveis para que praticassem. A dinâmica do curso foi a seguinte: dei uma aula teórica no domingo para uma turma, e, no fim, dividimos o grupo em três. Um grupo saiu comigo para o exercício prático depois da aula; e no domingo seguinte saí com os outros dois grupos para as atividades práticas. Damos uma volta no centro da cidade de Bar Elias e nos campos de refugiados de El Marj.
Eles já entendiam um pouco sobre a dinâmica dos equipamentos, então não foi algo que tive que me aprofundar muito. E, por já terem tido outras aulas, o olhar deles já era bem apurado. Na sede da ONG, que fica em El Marj, nas paredes há imagens impressas de fotografias produzidas em outros workshops. Em muitas fotos foram utilizadas distintas técnicas da fotografia. Eles são talento puro.
OE: Outros retornos para a comunidade foram oferecidos para além das aulas? Essas imagens foram / estão sendo expostas no Vale do Bekaa?
LN: Em meados de 2021, eles participaram de uma exposição presencial na Holanda. Na sede da ONG as fotos produzidas nos workshops estão expostas de forma permanente; e, mais recentemente, o projeto de jornalismo ganhou uma exposição no Action4Hope, outro centro que trabalha com refugiados no Líbano.
Em Fevereiro desse ano, aconteceu uma coisa muito legal: conseguimos realizar a primeira exposição online-permanente dos alunos. Se chama ‘Ossa Mar’eyya’ e está no site www.ossamareyya.online. Existe um objetivo para além da exposição em si: é um espaço onde podemos arrecadar doações para manter as aulas e outros projetos paralelos, como os workshops de artesanato para mulheres conseguirem gerar renda.
No site, há uma aba para doações e mais detalhes sobre os projetos; e a ideia é que alcance um público mais abrangente para além do Líbano e da Europa; conseguindo ajuda financeira para auxiliar essas pessoas e o aluguel do espaço em El Marj. Trazer este projeto para o Brasil e a UFRJ vai ajudar bastante na visibilidade desses indivíduos.

OE: A relação da questão do refúgio com a fotografia é marcante. Imagens como a do menino Alan Kurdi rodaram o mundo em 2015. Desde então, o número de migrantes mortos em travessias perigosas continua aumentando. Acha que a fotografia é eficaz na denúncia sobre a situação precária dos refugiados em distintos cantos do mundo?
LN: Eu entrei efetivamente nos trabalhos com migrações por causa da foto do Alan. Então posso dizer que a fotografia teve um impacto imenso na minha vida pessoal. Mas também entendo que ela pode ser utilizada para espalhar medo e desinformação: é comum ver em mídias ocidentais imagens produzidas em campos de refugiados que estigmatizam as pessoas.
O Líbano é o país com a maior população refugiada per Capita do mundo (um refugiado a cada quatro libaneses), e vive uma das piores crises de sua história. Assim, é preciso entender a real situação destas pessoas e a fotografia pode ajudar nisso. Através dela, podemos entender questões importantes para os refugiados, como o aceso à universidade.
Com a fotografia, essas pessoas podem se tornar agentes e contadores de suas próprias histórias. Como ocorre na exposição online, são os alunos que retratam a realidade local em diversas fotos repletas de sensibilidade e beleza, sem lugar para estereótipos negativos.

OE: Pretende voltar para o Líbano e o Vale do Bekaa?
LN: Penso no Líbano todos os dias e queria ter ficado mais tempo. Gostaria muito de ir e passar pelo menos seis meses, já que é um local que me apaixonei: o país é incrível, as pessoas são maravilhosas e receptivas e as montanhas e praias são encantadoras.
Nem preciso falar do Bekaa. Cidades como Baalbek, Anjar e Zahle têm muitas histórias para contar desde a era romana. E me senti muito bem em todos os locais em que estive. É uma pena ver que a corrupção afundou um país tão mágico. Fui muito bem recebido, principalmente nos campos de refugiados; e acredito que foi uma relação muito recíproca. Acompanho alguns alunos nas redes sociais e nos grupos de whatsapp; e assim não perdi o contato. Com certeza um dos meus objetivos é voltar lá e aprender muito mais do que a primeira vez.
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Imagens da exposição ‘Ossa Mar’eyya’ estarão em cartaz no campus Praia Vermelha da UFRJ, entre os dias 24 e 26 de outubro, durante a realização do VIII Simpósio de Pesquisa sobre Migrações. Prestigie!
