A diáspora iraniana é gigantesca, espalhada pelos quatro cantos do mundo. De acordo com o Association for Iranian Studies¹, entre 4 e 5 milhões de cidadãos iranianos vivem no exterior¹, sobretudo na América do Norte, Europa e Oriente Médio: Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, Emirados Árabes e Alemanha são os cinco países com maior quantidade de residentes nascidos no Irã. Uma grande parcela migrou após a revolução de 1979, que instaurou no país um regime teocrático que combate a diversidade de ideias, as minorias religiosas e sexuais e também as mulheres.

A legislação da República Islâmica do Irã considera, em inúmeros aspectos, o gênero feminino inferior ao masculino. Nos tribunais, os depoimento de uma mulher vale metade do de um homem. Para obter o passaporte, as mulheres necessitam de uma aprovação do marido ou de algum responsável. Elas não podem ser eleitas para os mais altos cargos do sistema político, e nos locais públicos devem obrigatoriamente usar roupas largas – para esconder o formato dos corpos – e o hijab – o véu muçulmano que cobre os cabelos. Foi por descumprir essa lei que Mahsa Amini, uma jovem de 22 anos, morreu em 16 de setembro: após ser presa em Teerã pela polícia moral por não estar seguindo as normas de vestimenta, acabou entrando em coma e morrendo horas depois. O governo alega que ela sofreu um ataque cardíaco na delegacia, mas os familiares de Amini garantem que ela tinha boa condição de saúde e ativistas denunciam diversos casos de tortura após detenções desse tipo.

Iraniana corta o cabelo em Istambul em protesto pela morte de Mahsa Amini. Imagem: Murad Sezer / Reuters

O trágico ocorrido com a jovem Mahsa relembrou traumas das migrantes iranianas, de quando ainda viviam no país. Neda Amini², que desde 2015 reside no norte da Europa, conta sobre sua reação quando leu as notícias: “Fiquei com muita raiva, ela foi morta na mesma delegacia para onde fui levada duas vezes. O trauma de ter sido detida por conta de uma aparência não aprovada pelo governo veio à tona. Eu imaginei que isso poderia ter acontecido comigo, com minha irmã e com minhas amigas. Esse tipo de coisa pode acontecer com qualquer mulher iraniana”. Parvaneh Amini³, que vive no Brasil há mais de 20 anos, diz: “Me senti indignada, extremamente triste, com raiva e ódio. Diariamente, ao acordar, checo as redes sociais para ver as notícias sobre o Irã e já começo chorando na cama de tristeza. Por um lado fico muito triste porque a cada dia morrem mais jovens e acontecem mais torturas e todos os tipos de abuso, mas por outro lado fico feliz que não desistiram e estão resistindo”. A morte da jovem foi o estopim para imensos protestos, dentro e fora do Irã. Com o slogan “Mulher, Vida, Liberdade”, iranianas no país e no exterior enchem as ruas exigindo punição para os responsáveis pela morte de Mahsa, o fim da perseguição às mulheres e a queda do governo religioso. No último sábado, dia 01 de outubro, grandes atos aconteceram em 150 cidades ao redor do mundo. Shirin Amini⁴, que migrou para os Estados Unidos em 2015, participou nessa data e em outras duas, além de ter colaborado na construção de um memorial em homenagem à Mahsa na universidade onde trabalha. 

Protesto de 01 de outubro em Roma. Na faixa, a inscrição “Mulher, Vida, Liberdade”. Imagem: Alessandra Tarantino / AP

Com a continuação e o crescimento dos protestos, o regime adotou como uma das táticas centrais o bloqueio da internet, de forma a dificultar a divulgação de cenas de repressão dentro do território iraniano. Neda lembra que “da última vez que fizeram isso, em 2018, mataram 1.500 manifestantes. Desta vez o governo não cortou a internet completamente, mas a velocidade de conexão ficou muito lenta e as pessoas tiveram que recorrer a alguns artifícios como VPNs”. Isso se torna um problema também para as iranianas que vivem no exterior e ficam sem poder conversar com pessoas queridas. Shirin conta que tem sido difícil se comunicar com os familiares que vivem no Irã: “Fiquei alguns dias sem poder falar com a família, até que um de meus irmãos conseguiu me mandar um email”.

Iranianas protestando em São Paulo. Imagem: Vitor Serrano / Folhapress

Setareh Amini⁵, uma iraniana bahá’í que veio para o Brasil na década de 70, vê com orgulho a reação liderada pelas mulheres do Irã e encontra outras formas de participar das mobilizações: “O nascimento orgânico da busca pela liberdade alegra o coração. Assinei um abaixo-assinado em defesa de Mahsa Amini e publico no Instagram a minha indignação pelo ocorrido”. Ela, que é devota de uma das religiões mais perseguidas no Irã e migrou ainda antes de 1979, lembra que o clima opressivo já era uma realidade antes do governo religioso: “Como uma mulher bahá’í, sentia um duplo preconceito. ideais bahá’í como a igualdade de direitos e oportunidades entre homens e mulheres eram ignorados no Irã. Ainda que na época a vestimenta não fosse uma questão, pois as mulheres podiam usar a roupa que quisessem, havia um ar de força masculina misturada com o preconceito religioso que era muito forte e impedia que nos manifestássemos livremente em relação a questões muito caras aos bahá’í, como a promoção de uma vida livre de preconceitos e o fato de acreditarmos que o planeta é um só país, e os seres humanos seus cidadãos”.

Manifestante em Berlim. Imagem: Lisi Niesner / Reuters

No entanto, o ambiente opressor se agravou com a chegada dos aiatolás no poder. Leis foram endurecidas e acontecimentos como o ocorrido com Mahsa se tornaram mais comuns. A morte da jovem no mês passado incendiou o país, e iranianas dentro do território nacional e nos distintos cantos do mundo mais uma vez se uniram na luta por mais direitos e por mudanças profundas: “As iranianas no exterior desejam o mesmo que suas irmãs no interior do Irã. Sabemos que, através de um governo teocrático, não teremos acesso a todos os direitos humanos. Esta é uma revolução feminista e queremos viver um mundo que respeite nossa autonomia corporal. Queremos visitar nosso país sem sermos obrigadas a usar coisas que não queremos”, explica Neda.

Recordando sua última noite no país, ela se lembra do motivo principal de querer migrar e não pretender retornar até que o Irã viva uma nova realidade: “Na noite em que eu ia deixar o Irã, no aeroporto, a polícia moral se aproximou de mim e da minha família e pediu para nos cobrirmos melhor. Eles iam levar minha prima para a delegacia, mas minha mãe e uma amiga imploraram para a polícia não levá-la. Esse foi o momento em que prometi a mim mesma nunca voltar ao Irã até que o país estivesse livre”. “Nós, mulheres iranianas, só queremos ter uma vida normal”, completa Shirin.

¹ Fonte: https://associationforiranianstudies.org/content/impact-and-relevance-iranian-diaspora-europe

² Nome alterado por questões de segurança.

³ Nome alterado por questões de segurança.

⁴ Nome alterado por questões de segurança.

⁵ Nome alterado por questões de segurança.