Já contamos sobre o livro infantil “A menina que abraça o vento – a história de uma refugiada congolesa”, escrito pela jornalista, escritora e integrante do grupo de pesquisa Diaspotics Fernanda Paraguassu, ilustrado por Suryara Bernardi, e lançado em 2017 pela Voinho, o selo infantil da Editora Voo.
Inspirada em histórias reais de meninas refugiadas da República Democrática do Congo que frequentavam a sede da Cáritas no Rio de Janeiro, a obra de ficção narra o cotidiano da personagem Mersene, uma menina que fugiu dos conflitos em seu país, migrou para o Brasil e tenta driblar a saudade do pai que ficou para trás.
A obra apresenta a questão do refúgio para as crianças, buscando estimular a empatia com o diferente e combater o preconceito e a xenofobia. Integra o projeto “Minha Biblioteca”, da prefeitura de São Paulo, o programa “Refugiados nas Escolas”, do PARES Cáritas RJ, foi tema de trabalhos acadêmicos e em 2019 foi assunto de bate-papo na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), a convite do Sesc; passando a integrar a BiblioSesc, um projeto de biblioteca itinerante que percorre o país com um acervo de mais de 3,5 mil livros.
A última novidade, divulgada em 20 de junho, no Dia Mundial do Refugiado, é que “A menina que abraça o vento” foi traduzida para o inglês e o francês, estando disponível para compra mundialmente na Amazon. Confira a entrevista com a autora:
O Estrangeiro: “A menina que abraça o vento” busca aproximar o universo infantil das questões da migração e do refúgio. Como surgiu a ideia de produzir o livro?
Fernanda Paraguassu: Em 2017, li a notícia de que o número de mulheres que buscavam refúgio no estado do Rio de Janeiro chegava ao mesmo nível dos homens. E não era reunião familiar. Elas vinham na frente. Muitas vezes sozinhas ou acompanhadas de crianças. Busquei conhecer as histórias dessas mulheres. Queria saber como era chegar num país completamente diferente sem poder voltar para casa, sozinha, com criança pequena para cuidar, sem rede de apoio, sem saber o idioma. O que se passa na cabeça dessas mulheres? Quais são seus medos? Suas dúvidas? De onde tiram forças aqui? Enquanto eu fazia as entrevistas com as mulheres na sede da Cáritas no Rio, um grupo de crianças brincava no pátio da casa. Foi quando presenciei uma cena durante a brincadeira. Aquela cena me emocionou e foi a inspiração para a história do livro.

OE: A protagonista, a personagem Mersene, além de ser uma criança refugiada, é menina e congolesa. Pode comentar sobre essa escolha? Qual a importância de visibilizar a migração infantil, feminina e oriunda do continente africano?
FP: Naquele ano de 2017, ainda se falava muito da situação na Síria. A Primavera Árabe eclodiu em dezembro de 2011 e quatro anos depois, a Organização das Nações Unidas (ONU) registrou aumento recorde no número de refugiados por conta dos conflitos na região. Os países europeus definiram a situação como uma das maiores “crises migratórias” ao terem que administrar o aumento brusco de solicitações de asilo e refúgio. Ao mesmo tempo, conflitos em países africanos seguiam expulsando pessoas de seus lares, como era o caso da República Democrática do Congo. Mas a mídia não tratava disso. Tanto que, na sede da Cáritas, havia grupos grandes de congoleses chegando quase todos os dias em situação de alta vulnerabilidade. Era preciso falar disso. Com a história da menina congolesa em mãos, fui até a equipe da Cáritas. Foi consenso entre a equipe sobre a necessidade de se publicar a história em forma de livro literário. Afinal, a literatura é uma ferramenta que permite gerar empatia, muito mais que um panfleto institucional ou um livro didático. Então o objetivo foi levar informação sobre o que é o refúgio por meio da literatura. Muitas crianças refugiadas acabam encontrando dificuldades de integração ao chegar no país de acolhimento por conta da falta de informação sobre o conceito. O próprio Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) sugere que os países acolhedores promovam campanhas de informação para a população local. Esse livro acaba sendo uma forma de contribuição nesse sentido.

OE: O livro teve um imenso sucesso, tendo vendido cerca de 300.000 exemplares, participado de diversos programas e eventos, como o projeto “Minha Biblioteca” da prefeitura de São Paulo e o programa “Refugiados nas Escolas”, do PARES Cáritas RJ, e sendo tema de pesquisas acadêmicas e bate-papos em eventos literários tão importantes como a FLIP. Esperava essa acolhida? Quais foram as experiências mais marcantes ao longo da recepção da obra?
FP: O sucesso do livro foi resultado de um longo trabalho de equipe. O engajamento da autora na divulgação da obra é muito importante. E foi o que me propus a fazer desde o início. A parceria com as editoras da Voo também foi incrível. É uma editora pequena de Curitiba, mulheres com uma cabeça fantástica e muita disposição. Depois de um tempo, o conhecimento sobre o livro vai se multiplicando. Além de ganhar editais, o livro é objeto de estudos acadêmicos em diferentes disciplinas. Até hoje participo de rodas de leituras com alunos em escolas, dou palestras sobre o processo de construção do livro para professores, estudantes de pedagogia em universidades. Uma das experiências mais marcantes foi, sem dúvida, o convite que recebi em 2018 para conhecer o trabalho feito pela professora Silvania de Oliveira, na Escola Municipal Profa. Severina dos Ramos de Sousa, de Itaguaí, no estado do Rio de Janeiro. Foram dois meses de atividades interdisciplinares com alunos do pré ao 5º ano sobre respeito e diversidade, com apenas um exemplar do livro “A menina que abraça o vento”. Ao fim do período, me convidaram para conhecer os trabalhos feitos pelos alunos e assistir à peça baseada no livro. Os alunos estavam reunidos do refeitório, que estava todo decorado com os trabalhos. Havia um mural com referência a uma página do livro. E uma biografia minha pendurada numa pilastra enorme. Muito lindo! A protagonista da peça era muito parecida com a Mersene do livro. Ela aproximou-se de mim e disse “Bem-vinda à sua criação”. Aquele momento foi muito emocionante. Não deu para segurar o choro. Também é gratificante receber retornos pelas redes sociais. Outro dia uma mãe escreveu que o filho assistia às notícias sobre a Ucrânia quando ouviu a palavra refugiado. Foi ao quarto buscar o livro da Mersene e pediu para mãe ler a história. Ele queria saber o que estava acontecendo naquele momento e, para isso, queria lembrar o que era um refugiado. Meu envolvimento neste livro é naturalmente constante. No último Dia Mundial do Refugiado, comprei da editora com meu desconto de autora 15 exemplares para doar ao Centro de Atendimento de Refugiados. Sugeri que vendessem durante a Feira das Nações que a instituição organizou na UFRJ, em parceria com a Minerva Consultoria, a empresa júnior da universidade. Os livros foram vendidos em menos de duas horas de evento e toda a renda obtida com a venda ficou para eles. Esse livro foi feito para isso. Para ajudar, para sensibilizar, para informar, para contar uma história de vida, enfim, para dar uma contribuição aos refugiados.
Outra notícia boa é que, neste ano, o livro venceu o Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) 2023. O PNLD é um conjunto de ações executadas pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) e pelo Ministério da Educação (MEC) voltadas para a distribuição gratuita de obras didáticas, pedagógicas e literárias para professores e estudantes da rede pública da educação básica no Brasil. Fiz o roteiro e gravei os vídeos para o professor e o aluno de acordo com o que estabelecia o edital, que é bastante rigoroso. Deu muito trabalho. Mas economizamos dinheiro, porque isso tem um custo. O próximo passo é divulgar nas escolas públicas e secretarias de educação que vencemos o edital e fazemos parte dessa lista para que elas se interessem pela obra e façam os pedidos. Caminhamos bastante, mas ainda temos muito trabalho pela frente.
OE: “A menina que abraça o vento” ultrapassou fronteiras e foi traduzido para o inglês e o francês. Qual a importância dessa história se aproximar do público falante dos dois idiomas? Existem planos de tradução para outras línguas, como por exemplo o espanhol?
FP: As versões em inglês e em francês estão disponíveis em e-book e impressão sob demanda na Amazon para os seguintes países: Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha, Dinamarca, França, Espanha, Itália, Holanda, Japão, Canadá, México, Austrália. Ao mesmo tempo em que contribuímos com a história infantil sobre o refúgio nesses países que também acolhem refugiados, apresentamos uma perspectiva do ponto de vista do Brasil. Mostramos lá fora de que forma estamos nos mobilizando como sociedade para o acolhimento. Também estamos testando a demanda para venda interna nesses idiomas com preço em reais. A edição em inglês já está disponível para venda em e-book na Amazon Brasil. Sabemos que há interesse de escolas que ensinam nesses idiomas inclusive como segunda língua, mas também de imigrantes e refugiados que buscam literatura em sua própria língua, como franceses, canadenses, belgas, suíços, marroquinos, congoleses, senegaleses e haitianos. Isso pode ser muito acolhedor. Temos planos de traduzir para outros dois idiomas em outubro. Vou dar spoiler (risos). Devem sair para o Dia das Crianças as versões em espanhol e em italiano. As traduções estão prontas. Mas ainda não estão diagramadas. A ideia das traduções é antiga e partiu de dentro da família. Minhas duas cunhadas, que trabalham com tradução, ficaram encantadas com o livro. Tínhamos uma versão pronta em inglês feita pela Letizia de Lannoy Kobayashi, que mora há mais de 20 anos no Havaí. Mas não tínhamos parado para discutir como viabilizar a publicação em outro idioma. Até que as outras versões foram enviadas no início deste ano pela Lucie Josephe de Lannoy, professora do Departamento de Línguas Estrangeiras e Tradução do Instituto de Letras da Universidade de Brasília. Ficamos encantadas com todos os textos traduzidos, mas não havia programação orçamentária para publicá-los nos próximos meses. Então minhas cunhadas abriram mão da remuneração e eu arquei com os custos do designer e da revisão de tradução. A editora organizou todo o processo e assim as duas primeiras versões ficaram prontas no primeiro semestre, no Dia Mundial dos Refugiados. Foi um belo trabalho de equipe, como sempre, com muito amor envolvido mesmo.

OE: Após “A menina que abraça o vento”, você publicou seu segundo livro, “Narrativas de infâncias refugiadas: a criança como protagonista da própria história” (Ed. Mauad X), fruto da sua dissertação de mestrado e que também aborda o refúgio infantil a partir da sensibilidade e do subjetivo, vencedora do Prêmio Compós 2021, na categoria Melhor Dissertação. Está trabalhando em alguma nova obra? Pretende continuar se dedicando à questão do refúgio infantil?
FP: No meio tempo publiquei o livro infantil Possibilidades, também com a Editora Vooinho, com histórias reais de pessoas com deficiências. Entre elas, está a história de um refugiado cego, Maurício Dumbo, que veio para cá ainda criança em 2001 de Angola, assolada pela guerra civil entre 1975 e 2002. Falar sobre imigrantes e refugiados com deficiência e suas demandas é muito importante, mas, infelizmente, o assunto não está na pauta do debate público. Neste momento estou focada na minha tese de doutorado. Sigo sob orientação do prof. Mohammed ElHajji, que aliás escreveu um prefácio incrível no meu livro do mestrado, com o tema do refúgio. Meu desafio da vez é tratar da relação entre estigma, refúgio e mídia. Tenho a impressão de que a questão do refúgio infantil vai surgir de alguma maneira. Minha atenção acaba me aproximando desse recorte. Por exemplo, quando analiso os dados recentes do Global Trends, relatório de tendências migratórias divulgado neste ano pelo Acnur, vou direto na composição demográfica. Dos 35,3 milhões de refugiados em 2022, estima-se que 41% eram crianças (de zero a 17 anos de idade). Se você selecionar por gênero, mulheres e meninas somaram 51%. Na comparação com 2021, houve uma queda de 1% na quantidade de crianças e um aumento na mesma proporção de idosos (mais de 60 anos). O aumento de mulheres e meninas foi de 3%, especialmente por conta do adicional de 5,7 milhões de refugiados ucranianos, que foram equivalentes a 16% da população refugiada ao fim do ano passado. O relatório aponta que, ao contrário de outros países com grandes populações refugiadas, há mais mulheres e meninas (entre 59% e 64%), menos crianças (entre 33% e 39%) e mais idosos (entre 7 e 9%). No entanto, quando você analisa dados do governo brasileiro relativos ao nosso país por grupo de idade em 2022, é possível verificar um perfil jovem de refugiados ou solicitantes de refúgio. Somente da Venezuela, o maior grupo de solicitantes de refúgio tinha menos de 15 de idade, representando 82,5% do total de solicitações de refúgio nessa faixa etária. De acordo com o relatório do Conare, os fluxos migratórios para o Brasil têm passado por processos de feminização e aumento de crianças e jovens, principalmente a partir de 2015. E essas novas configurações vêm se consolidando nos últimos anos, muito por conta da migração venezuelana para o nosso país. Portanto, é importante ter uma visão sistêmica da migração, mas também é necessário fazer um recorte regional, para que a gente possa compreender os desafios que afetam as pessoas que acolhemos. Só assim podemos nos preparar para um acolhimento efetivo.
Sobre as versões de “A menina que abraça o vento – a história de uma refugiada congolesa”:
The Girl Who Hugs the Wind: The Story of a Congolese Refugee
(English Edition)
Por Fernanda Paraguassu e Suryara Bernardi
Tradução: Letizia de Lannoy Kobayashi
La petite fille qui embrasse le vent: Histoire d’une refugiée congolaise
(French Edition)
Por Fernanda Paraguassu e Suryara Bernardi
Tradução: Lucie Josephe de Lannoy
Revisão de tradução: Mélanie Véronique Léger Montinard

