Refúgio e histórias em quadrinhos (HQs). Uma aproximação inusitada entre esses dois universos me trouxe a uma longa e recompensadora jornada de estudos e pesquisas.

Sempre gostei muito de HQs. De histórias de ficção científica e fantasia a documentários e tiras de comédia, a arte de contar histórias através de sequências de quadros me fascina por sua capacidade de incorporar elementos da escrita com a ilustração em uma forma de arte e comunicação única e distinta. Meu interesse em estudar as características narrativas das HQs surgiu enquanto ainda cursava o bacharelado em Letras – Formação de Escritor na PUC-Rio. Evidentemente, o tema estava um pouco deslocado em relação à proposta do curso. Afinal, o universo das HQs apenas tangencia a Literatura, sendo mais comumente associado às áreas de Comunicação e Design.

A professora com quem encontrei maior afinidade em termos de pesquisa foi a Rosana Kohl Bines, com quem havia cursado uma disciplina de literatura infanto-juvenil ainda no primeiro ano da graduação, em 2018. Por mais que frequentemente sejam feitas confusões entre HQs e literatura voltada para crianças, especialmente por haver uma editora de HQs voltadas para o público adulto (retratando conteúdo erótico explícito, sátiras políticas complexas ou violência extrema, por exemplo), a presença de ilustrações em livros infantojuvenis me pareceu um bom ponto de aproximação para começar uma pesquisa. Entretanto, havia uma condição para a minha participação no projeto da Rosana: precisaria abordar o refúgio, fenômeno que ela estuda há anos através da literatura e, mais especificamente, na literatura infanto-juvenil, tanto teoricamente como em estudos de campo. Não preciso nem dizer que a condição foi prontamente aceita!

Durante o primeiro ano de pesquisa, além de fazer estudos sobre o fenômeno do refúgio em um contexto nacional e internacional, participando, inclusive, de uma disciplina de pós-graduação da Cátedra Sérgio Vieira de Mello da PUC-Rio (coordenada por professores de seis departamentos diferentes) e participando das atividades do Observatório de Mobilidade e Direitos Humanos (OMDH) (coordenado por Rosana e Roberto Yamato), fiz uma revisão sistemática sobre HQs que abordavam o fenômeno do refúgio. Cataloguei HQs nacionais e internacionais cujos enredos abordavam o refúgio e fichei artigos científicos resenhando e analisando estas HQs. A partir destas análises, fiz algumas descobertas a respeito do diferencial narrativo que as HQs trazem para a discussão do refúgio, incluindo o uso de elementos pictórico- verbais e o silêncio.

Características e particularidades das HQs

Por ser uma mídia essencialmente silenciosa (a não ser que acompanhada por algum dispositivo de áudio), HQs dependem inteiramente de uma combinação entre imagens e palavras e por vezes uma hibridização das duas, para tecer suas narrativas. Qualquer um que já tenha ao menos folheado uma HQ de super-heróis ou um mangá shonen já “ouviu” uma explosão produzida pela rajada de energia de algum super-ser, mas logo percebeu que aquela onomatopeia era apenas a representação gráfica de um som. Igualmente, os personagens que povoam as tirinhas e graphic novels também não passam disso: ilustrações caricatas que representam personagens e locações. A repetição dessas ilustrações (que, em muitos casos, podem ser descritas como caricaturas) em quadros separados por sarjetas (os espaços em branco entre um quadro e outro) produz ilusões de movimento.

Há também um forte tom pejorativo associado à palavra “caricatura”, ainda que uma de suas definições seja apenas “a reprodução deformada de um objeto, um indivíduo ou situação”. Evidentemente, é possível utilizar-se de charges e HQs para se produzir ataques xenofóbicos e racistas contra refugiados e imigrantes, como recorrentemente foi feito desde a popularização das caricaturas de jornal no final do século XIX e início do XX e segue sendo feito em jornais reacionários e em certas partes da internet. Entretanto, pode-se também usá-las para trazer a humanidade para primeiro plano ou, mesmo, ressaltar um tópico que está sendo ignorado ou pouco discutido em relação a temas sensíveis, difíceis, constrangedores e até violentos como guerras, massacres e catástrofes. Por esta perspectiva, a caricatura, ou cartum, torna-se, como pontua McCloud (1995, p.38) “um vácuo para o qual nossa identidade e consciência são atraídas… uma concha vazia que nós habitamos pra viajar a um outro reino. Nós não só observamos o cartum, nós passamos a ser ele.” [1]

A Odisseia de Hakim vol. 1 (2018, pg.14) — Este quadro é uma quadrinização da trágica e icônica foto de Alan Kurdi de 2015 por Nilüfer Demir

HQs que abordam a questão migratória

A aclamada graphic novel de Art Spiegelman, Maus (1980-1991), que conta detalhadamente a história do pai do autor, Vladek, um polonês sobrevivente do Holocausto que imigra aos EUA é reconhecida não apenas por seu valor autobiográfico, mas jornalístico, tendo sido a única HQ a receber o prêmio Pulitzer. A escolha por representar diferentes grupos de pessoas como animais antropomórficos (alemães tornam-se gatos; os judeus, ratos; os poloneses, porcos e os estadunidenses, cachorros) produz uma metáfora sobre nacionalismo, xenofobia, trauma, memória e, é claro, refúgio, que é relevante até os dias de hoje.

Apesar da atemporalidade de “Maus”, muitos aspectos desta obra não dão conta (e não teriam como dar) de demonstrar a complexidade do refúgio contemporâneo. Nas últimas décadas, o avanço global do capitalismo e o desenvolvimento de tecnologias de comunicação como a internet e, especificamente, a internet móvel, mudaram a forma que entendemos a imigração e o refúgio para sempre. Todas as obras mais recentes em quadrinhos que li e analisei durante este período de pesquisa abordam estes temas, de uma forma ou de outra.

“A Odisseia de Hakim” (2018-2020) de Fabien Toulmé, uma série de graphic novels contada em três volumes, relata a longa saga de um refugiado sírio que, fugindo da Guerra Civil de 2011, passa por diversos países ao longo dos anos até chegar na França. A HQ é baseada em fatos reais e foi produzida a partir de uma série de entrevistas que o autor realizou com o refugiado sírio Hakim. Além de reproduzir detalhadamente o percurso do refugiado baseado meramente nos seus relatos pessoais, Toulmé ilustra a si mesmo entrevistando Hakim, demonstrando as dificuldades do processo e incluindo os momentos de silêncio e a resistência do entrevistado de relatar certos traumas – uma decisão artística que coloca sua responsabilidade como entrevistador no centro da obra. A importância dos telefones celulares é um dos aspectos mais notórios da trilogia “A Odisseia de Hakim”. Além de servirem de principal meio de comunicação entre os personagens separados pelo processo de refúgio, é essencial se ter em mente que esta foi a primeira guerra a ser gravada e transmitida, muitas vezes ao vivo, para o mundo inteiro através da internet móvel.

De todas as obras que li, entretanto, a que melhor aborda o tema da vigilância constante da era moderna é a breve webcomic “At work inside our detention centers: a guard’s story” (2016) do jornalista Nick Olle e do ilustrador Sam Wallman. A HQ utiliza o recurso da ilustração para produzir uma reportagem que denuncia o cruel sistema de detenção de imigrantes da Austrália. O governo do país é notoriamente pouco transparente quanto às condições de seus centros de detenção de imigrantes privados, não permitindo fotos e limitando o acesso de jornalistas e entidades de direitos humanos internacionais interessados em monitorar as atividades que ocorrem nestes centros. Considerando estes fatores, a HQ dá forma e contorno a uma entrevista que Nick realizou com um ex-guarda de um destes centros de detenção, preservando sua identidade e voz. Através de ilustrações, a dupla de ilustrador e jornalista apresenta uma HQ triste, visceral e que provoca nossa compaixão e até revolta, descrevendo e ilustrando os centros de detenção como autênticas prisões (em que violações aos direitos humanos dos refugiados detidos não são apenas comuns, mas incentivadas pelos guardas e seus supervisores). O formato digital da HQ e a ausência de requadros em torno das ilustrações apenas amplificam o senso de isolamento, alienação e desespero vivido pelos refugiados e pelo guarda. À medida que o leitor desce o olhar ao longo da página branca e silenciosa, ele literalmente se aprofunda na densidade dos relatos e do ambiente. Chegar ao fim da página é como chegar ao fundo de um poço.

“At work inside our detention centers: a guard’s story” (2016)

Encontrei também com grata surpresa dois exemplos de webcomics nacionais que abordam o tema refúgio. “Diasporados” de Norberto Liberator, vencedor do Prêmio Expocom Centro-Oeste e terceiro-finalista do Prêmio Jornalístico Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos (ambos em 2019). “Diasporados” traz três entrevistas com três jovens que se refugiaram no Mato Grosso do Sul: um do Haiti, um da Venezuela e um da Síria. “O Haiti é aqui”, de Adriano Kitani e Enio Lourenço, traz entrevistas com três refugiados haitianos (uma mulher e dois homens) vivendo em São Paulo. Apesar de possuírem suas particularidades, ambas HQs abordam o refúgio de maneira similar. Como Fabien Toulmé na trilogia “A Odisseia de Hakim”, tanto Liberator quanto Adriano e Ênio se inserem nas suas obras, de modo a não ocultar seus papéis e responsabilidades como entrevistadores. As obras abordam as dificuldades linguísticas, culturais e econômicas dos seis refugiados e demonstram o quanto o refúgio é e se tornará cada vez mais um tópico que precisa ser abordado e discutido no Brasil.

Tendo analisado todas estas obras, concluí que abordar o tema refúgio focando exclusivamente em uma certa “autenticidade” visual ou sonora não é o suficiente para garantir uma boa pesquisa ou obra de arte. Afinal, a aparente neutralidade e autenticidade de se filmar e gravar as vozes de pessoas em situação de refúgio pode ser igualmente problemática (e até se aproximar de uma caricatura xenofóbica) se não vier acompanhada da devida lente crítica. Esta é a crítica que o filósofo e crítico de arte Didi-Huberman faz ao documentário “Human Flow” (2017), do artista chinês Ai Weiwei, argumentando que o protagonismo dos refugiados é reduzido por meio das imagens aéreas e distantes capturadas por drone. Portanto, ao analisar e criticar uma reportagem, um estudo acadêmico ou uma obra artística envolvendo o tema “refúgio”, é importante que o pesquisador não reduza sua crítica à mídia que está sendo utilizada, mas à forma como o conteúdo está sendo exposto através desta mídia, independentemente das intenções do autor. Em um contexto em que a maior parte da mídia que consumida é audiovisual (através de celulares com internet móvel, computadores e canais de televisão, por exemplo), o principal contato que o público geral tem com pessoas em situação de refúgio acontece através de imagens e vídeos. Por esta perspectiva, as HQs têm o potencial de apresentar o refúgio de uma forma diferenciada e, em alguns casos, inédita.

Meu percurso de pesquisa e algumas descobertas

A partir de todas estas análises e conclusões, minha então orientadora sugeriu que criasse minha própria HQ. Apesar de parecer uma evolução quase natural da pesquisa que vinha realizando no contexto do meu curso, não posso negar que senti inicialmente uma certa resistência. Afinal, a criação de uma obra, seja ela de ficção ou não-ficção, envolvendo temas delicados como o refúgio e a imigração exigem certas responsabilidades a mais do escritor (ou, no meu caso como quadrinista, escritor e desenhista). Sabia desde o início que este seria um grande desafio. Afinal, após consumir tanto conteúdo sobre quadrinhos, refúgio e obras sobre refúgio em quadrinhos, fiquei em dúvida sobre que tipo de perspectiva nova poderia produzir em uma obra original.

Entrei em contato com a dramaturga e roteirista Vida Oliveira (que também realizava a oficina de pós-graduação) que intermediou o contato com um rapaz sírio refugiado no Rio de Janeiro desde 2011. Pouco depois, acompanhado de Rosana e Vida, pude realizar uma entrevista com ele. Isso se deu durante a Pandemia de Covid-19 e, portanto, a entrevista foi por via remota. Seguindo os protocolos de ética em pesquisa, foi pedido o consentimento esclarecido do entrevistado para a gravação da entrevista e lhe foi informado que sua história seria livremente adaptada em forma de HQ. Como o nosso entrevistado já havia sido informado sobre a natureza da entrevista, nossa conversa foi praticamente um longo e emocionante monólogo, onde ele entrou em detalhes sobre sua vida na Síria antes da guerra civil, o processo de fuga do seu país, sua dificuldade de se adaptar à cultura brasileira nos anos iniciais e seus eventuais retornos à Síria ao longo dos anos para visitar familiares.

Durante todo o ano de 2023, estudei a entrevista e fiz experiências de adaptá-la na forma de quadrinhos com variados graus de sucesso. Inicialmente, pensei em adaptar a entrevista livremente, produzindo uma HQ ficcional a partir dela. Fiz uma série de roteiros e diversas ilustrações, entretanto, nenhum resultado me satisfez. Resolvi deixar o produto de lado por um momento e voltar às bases da pesquisa. Já estava decidido a levá-la para o mestrado.

Um fato recorrente que notei nas minhas pesquisas sobre o refúgio é o silêncio. A fuga sigilosa do país de origem; o processo de atravessar fronteiras marítimas ou terrenas evitando identificação; a eventual produção de identidades falsas, o necessário, mas indesejável suborno de figuras de autoridade para burlar burocracias e o próprio processo de se adaptar a uma nova sociedade, muitas vezes hostil ou de cultura muito diferente, são algumas das situações potenciais de silêncio que rondam experiências de refúgio.

A ideia de demonstrar visualmente o silêncio no processo de imigração não é novidade no mundo dos quadrinhos e nem mesmo no recorte de quadrinhos sobre refúgio e imigração. Shaun Tan aplica esta técnica em sua graphic novel “A chegada” (2006), uma história em quadrinhos muda que conta a saga de um imigrante recém-chegado a uma opressiva e fantástica metrópole. O aspecto surrealista da cidade no quadrinho, repleta de arranha-céus e viadutos de proporções irreais e criaturas bizarras, é uma metáfora para os estranhamentos que muitos imigrantes vivenciam nos países em que chegam (especialmente quando migram para cidades grandes vindos de cidades pequenas ou mesmo áreas rurais).

A chegada (2006), pgs. 19 e 20

À medida que nos aproximamos do fim deste primeiro quarto do século XXI, em que o aquecimento global já dá indícios de que certas regiões do planeta se tornarão inabitáveis nos próximos anos e que guerras por procuração pipocam ao redor do globo, é cada vez mais nítido para mim que a imigração se tornará um dos maiores desafios da humanidade nas próximas décadas.

Imerso em todos esses estudos e seguindo a indicação da minha então orientadora, procurei também o professor Mohammed Elhajji, fundador e coordenador do grupo de pesquisa Diaspotics, onde tenho encontrado grande suporte teórico, social e cultural para a minha pesquisa e meus projetos. No mestrado que iniciei agora, sendo orientado pelo professor e quadrinista Octávio Aragão, além de aprimorar a pesquisa, estou voltando a amadurecer o produto. Até o presente momento, a idéia é entrevistar mais dois refugiados e produzir, assim, uma webcomic, adaptando as três entrevistas em forma de quadrinhos.

Se, como disse acima, o refúgio é um processo silencioso, é preciso também qualificar esse silêncio. Trata-se de um silêncio que não significa apenas a ausência de palavras, mas o silêncio do espaço de passagem. Um espaço em branco a ser preenchido, uma sarjeta entre dois momentos. Vistas de certa distância, as calhas entre os quadros dispostas numa página podem também remeter a uma prisão (grade ou grid, como recorrentemente é chamado) e as páginas sem requadros, à liberdade deste aprisionamento.

Por isso, o conceito de hospitalidade, conforme desenvolvido pelo professor Elhajii, poderá nos ajudar a desenvolver a escuta, a transcrição e a transmissão das novas palavras e imagens necessárias para acolher cada nova situação em refúgio.

Referência

  1. MCCLOUD, Scott. Desvendando os Quadrinhos. MBooks, 2005.