Este é o terceiro texto da Série MITRA no Rio, na qual O Estrangeiro publicará, ao longo dos meses de dezembro de 2019 e janeiro de 2020, depoimentos de alunos do Mestrado MITRA – Migrações Transnacionais, da Universidade de Lille III que fizeram intercâmbio na Universidade Federal do Rio de Janeiro. As matérias contarão, entre outras coisas, de onde essas pessoas vêm, como era a visão que esses migrantes tinham do Brasil, por que escolheram vir para cá, como foram suas experiências no país e quais foram os temas de suas pesquisas. A produção é de João Paulo Rossini, mestrando associado ao Diaspotics/UFRJ.

A publicação de hoje é uma entrevista com Sara García.

WhatsApp Image 2020-01-09 at 15.12.59
Sara abraçou o Rio e as árvores do Jardim Botânico. Foto: Arquivo pessoal

Sara García é espanhola, de Barcelona. Nossa entrevista se deu através de uma chamada de voz de WhatsApp, O Estrangeiro, falando desde o Rio de Janeiro e Sara, de Motril, cidade ao sul da Espanha. Ela voltou para o país em julho de 2019 e atualmente está trabalhando com a Cruz Vermelha na recepção de migrantes que chegam da África.

Graduada em Tradução e Interpretação de Línguas, antes de ser aluna do Mestrado
MITRA – Migrações Transnacionais, a espanhola fazia parte da equipe de uma companhia aérea na cidade de Bremen, no noroeste da Alemanha. No período, muitos refugiados sírios chegavam ao país, primeiramente sendo encaminhados a uma central em Berlim, a partir de onde acontecia a distribuição dessas pessoas pelo território e o envio delas às outras cidades.

As migrações batendo à porta

Sara passou a se deparar diariamente com refugiados, famílias inteiras perdidas na cidade e que não sabiam falar alemão. O seu contato com essas pessoas, os momentos em que as informou e auxiliou, foi um ponto de virada que a fez se questionar sobre sua ocupação profissional: “Foi um momento intenso, e eu pensei: como eu gosto disso, eu tenho que ter um trabalho assim”, conta ela.

Então a espanhola se demitiu do emprego que tinha na Alemanha para fazer trabalho voluntário em um campo de refugiados na Grécia, onde atuou durante dois meses. Ao longo da experiência, decidiu que gostaria de estudar as migrações e manter contato com indivíduos migrantes. Procurando possíveis postos de trabalho desse tipo, García encontrou a função de mediadora cultural e se apaixonou, em um momento quando sabia que, embora fosse formada em tradução, não gostaria de trabalhar como tradutora.

“Pesquisando os mestrados de mediação, descobri o MITRA, que é mediação intercultural, migrações e identidades. Então, cara, foi como: ‘isso é pra mim’”, declara Sara a O Estrangeiro. Sua pesquisa no Rio de Janeiro foi sobre a mediação comunitária, tendo a preocupação de questionar e entender as supostas parcialidade e neutralidade do mediador. Para isso ela frequentou dois locais, o Centro Municipal de Mediação Comunitária Salim Salomão, na Rocinha, e o Centro de Mediação Comunitária Padre Leão Dehon, na Penha.

Quando veio morar no Rio, Sara imaginou que seria muito mais perigoso do que de fato foi, principalmente por conta da ideia geral que as pessoas na Europa fazem segurança da cidade e do Brasil. “Também achava, por exemplo, que era mais difícil me aproximar das favelas, que eu nunca iria pra lá. E, depois, era onde eu mais gostava de ir, no Santa Marta, Cabritos, ou na Babilônia”, comenta García em relação ao estigma sobre as favelas.

As diferenças de estudar a história do outro lado do mar

A escolha do Brasil para morar durante dois dos quatro semestres do mestrado se deu principalmente pela espanhola já ter ouvido falar sobre a qualidade do ensino nas universidades federais brasileiras. A decisão também foi motivada pelo maior interesse em aprender a língua portuguesa e sobre psicossociologia de comunidades, eixo de estudos oferecido pelo EICOS, pós-graduação do Instituto de Psicologia da UFRJ e membro do consórcio MITRA, em relação à outra opção, de estudar Geografia na Universidade Cheikh Anta Diop, em Dakar (Senegal).

Para Sara, a experiência na Universidade Federal do Rio de Janeiro, em termos acadêmicos, foi muito singular: “Na França tem uma hierarquia muito grande entre o professor e o aluno, e no Rio a distribuição da aula era sempre um círculo onde todas as pessoas falavam”, lembra a jovem. Outro ponto destacado é a diferença de ponto de vista teórico: “Eu nunca tinha feito aulas de pós-colonialismo, decolonialismo, que é, afinal, escutar a história do outro lado do mar. E a gente estudou uma história que às vezes está explicada de uma maneira muito falsa, né?”, declara ela. “A desconstrução ocidental que eu tive lá no Brasil foi um dos melhores presentes, acho”, conclui.