Na minha pesquisa sobre migrantes que se apresentam à sociedade brasileira por canais do Youtube, pude perceber a preocupação em tratarem do tema da covid-19 aos usuários que os visitam na plataforma.

As produções variam em diferentes tipos de conteúdos que deixam claro a pluralidade desses canais e as estratégias comunicativas que a comunidade de migrantes no Brasil traça para a sua vida social. Os vídeos são informativos quando têm por objetivo contar o que está acontecendo em sua cidade, localizando a situação na vastidão do nosso território, ou mesmo comentando como o Brasil, em sua abrangência federal, ou seja, em nível de políticas de governo, vem adotando medidas para combater – ou não – o vírus que fez sua primeira vítima no país em meados de março.

Além dos vídeos informacionais, outro enfoque percebido é o do compartilhamento da experiência. Dizer aos demais como se vive nesse período, inédito para a nossa geração, tornou-se quase uma necessidade frente ao distanciamento imposto. Vídeo-chamadas, webinários, lives de shows e tantas outras formas de buscar uma sociabilidade perdida se tornaram um paliativo ao que não podemos mais garantir e nem sabemos quando teremos de volta. E dizer isso em termos de estrangeiridade tornou-se ingrediente a mais à pauta quase única que emergiu da vida doméstica(da). O objetivo é compartilhar as experiências voltando-se aos vínculos afetivos deixados para trás no lugar da migração ou, compartilhamentos voltados para os brasileiros, comumente o público principal dos canais acompanhados na pesquisa. Se já é difícil viver a pandemia, imagina quem está longe da sua terra? “Como estou passando na pandemia” é frase-chave a esses vídeo-blogs, diários audiovisuais formatados para o broadcast/streaming e potencializados nessa era de testemunhos.

Falando em testemunho…

O testemunho foi revitalizado no desenvolvimento das novas tecnologias de comunicação e informação. Descentralizadas da figura do comunicador-autorizado da empresa midiática (seja ela a jornalística, a musical ou cinematográfica), tais tecnologias deixaram de utilizar o testemunho como gatilho de uma mensagem previamente formatada, para ele próprio ser a forma principal do discurso. Assim, essas experiências  dos migrantes compartilhadas com seu público levantam o caráter testemunhal aproximando, comovendo e mobilizando novas formas de solidariedade.

O testemunho evoca socializações a partir da comparação. “Eu também vivo isso!” Dessas coesões e negociações de fala, discursos coletivos tomam forma na organização comunitária de minorais. No caso dos migrantes, neste tempo de pandemia, o eco que clamava um auxílio emergencial de políticas públicas por parte do governo tentou chegar até as esferas decisórias mais altas.

O PL pela Regularização Já e a sub-representação

Durante quase dois meses, a comunidade de migrantes organizada tem puxado o coro pela #RegularizaçãoJá. Irrestrita e para todos estrangeiros viventes no Brasil neste interminável período da pandemia do novo coronavírus. Afinal, nenhum ser humano é ilegal! Imperativo tornado ética comum a uma militância pela qual a construção de pontes seja mais importante do que a concretagem de muros.

À coletividade organizada e, consequentemente, mais efetiva, aliam-se também o que professor José Luiz Braga chama de “processos difusos”, mensagens que chegam às redes sociotécnicas por todos os lados e convergindo em exigências de pauta. Essas mensagens difusas são advindas de grupos menos organizados, mas também em busca de políticas de regularização os quais não fazem valor a lugares políticos dentro das circunstâncias subscritas por um sistema de inclusão excludente e de direitos alijados.

No caso atual, as exigências convergiram para tal apelo de regularização, fomentada por campanhas de mobilização e tornada Projeto de Lei (PL 2699/2020) na Câmara dos Deputados. Ainda não aprovado e na “casa do povo” desde 15 de maio, o PL, que pretende passar em regime de urgência – o que o possibilitaria dispensar um trâmite alongado por diversas comissões parlamentares – aguarda despacho do presidente da Câmara, o deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ).

O PL só chegou ao parlamento pela pressão de grupos organizados da mesma sociedade civil que, às custas de lutas, pesquisas e ações sociopolíticas e culturais, conseguiu substituir o Estatuto do Estrangeiro para uma Nova Lei de Migração depois de 37 anos submetidos a um conjunto de regras produzidas pela ditadura militar e de um regime de exceção ufanista que configurou o migrante como objeto de suspeita e ameaça.

Sessão de posse dos Deputados Federais para a 56ª Legislatura.
Parlamento brasileiro. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Enquanto a vida do migrante e seus testemunhos permitiram que novas narrativas ressignificassem seu espaço de sociabilidade, na nossa democracia representativa a representação migrante continua silenciada. O Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) assumiu a autoria do documento com a assinatura de nove parlamentares e, assim como outros partidos cuja bandeira dos direitos humanos emerge como defesa prioritária, espera-se sempre mais. Porém, a sequência da aprovação do PL da regularização não parece estar tão presente na pauta reivindicativa dos partidos. Mais distante ainda estão aqueles pelos quais os direitos humanos e as políticas de alteridade são tratados como inimigos ideológicos.

O diagnóstico é de que o migrante tem conquistado espaços de voz junto a setores da sociedade que o apoia, mas a conquista do espaço público das leis ainda é um desafio. Lembro que, mesmo a Nova Lei de Migração tendo sido apoiada pelo parlamento, ela só foi sancionada pelo presidente Michel Temer em 2017, com vetos a 18 trechos. Hoje, o desmonte do Estado, que se acentua com o acúmulo de desempregados e a consequente precarização do trabalhador, somado ao período pandêmico e outro acúmulo, agora de doentes nos leitos hospitalares, distanciam ainda mais os olhos dos poderes instituídos dos migrantes, historicamente tratados como sobra na dura constatação de sub-cidadania. Embora os problemas dos nacionais sejam pelos migrantes vividos de igual forma, a chegada do PL a Brasília parece ter sido seguida de uma aridez no terreno de luta pelos migrantes no âmbito político-partidário. Os migrantes falam, pedem sua necessária regularização, mas quem legitima em forma de lei e de direito?

Meu diagnóstico é que, enquanto não tivermos parlamentares comprometidos primordialmente com a causa, os migrantes continuarão em segundo plano na imensidão das lutas democráticas e de direitos em um Brasil que aprofunda suas desigualdades. A questão é como promovê-los na constante volta de nacionalismos que explicam um país desconhecido de si mesmo, de suas raízes e de sua história. Certamente um dos caminhos é pela via de um testemunho mais ligado às demandas coletivas, mas hoje eles ainda não bastam frente às urgências pandêmicas.

 

Otávio Ávila
Pesquisador de doutorado do Diaspotics/UFRJ e editor do estrangeiro.org