Em 1936, o mundo caminhava tragicamente para sua Segunda Guerra Mundial, que iniciaria três anos depois e se estenderia até 1945. Ela foi a consequência mais grave das já pauperizadas economias mundiais e dos regimes totalitários que romperam o tecido social pelas formas mais inumanas de segregação.
Neste tempo, um jovem doutorando do Departamento de Sociologia e Antropologia da Escola de Chicago encontrou em North End (Little Italy), um bairro marginalizado de Boston, o espaço ideal para sua pesquisa sobre áreas urbanas degradadas socialmente pela alta densidade demográfica e com escassos serviços públicos.
A tese de William Foote-Whyte se transformou no clássico da sociologia urbana Sociedade de Esquina (Street Corner Society, no original), publicado em 1943 e traduzido ao português apenas em 2005, lançado pela editora Zahar. No livro, o economista de formação descreve suas vivências nos quatro anos que residiu no bairro e se aprofundou na vida cotidiana dos filhos de imigrantes italianos. Aprendeu um pouco de italiano, embora seu contato com os mais jovens demandasse apenas seu nativo inglês – uma iniciativa valorada para aqueles cujo território e idioma não dominam naturalmente. O estudo foi consagrado pela academia no século XX, incluindo o enaltecimento de Gilberto Velho no prefácio do livro, chamado por ele como um dos mais importantes textos das ciências sociais do século.
É muito interessante considerar que o antropólogo só chegou a Cornerville (como ele chamou o bairro, dando-lhe certa privacidade) ao perceber que sua alta densidade demográfica, associada à escassez de saúde e segurança, configuraria-se num espaço ideal para sua pesquisa, ainda crua e generalista. A pesquisa também desconsiderava em certa parte o status migratório, com a exceção da conhecida condição da “desorganização territorial” vinculada à etnicidade estrangeira por parte do senso comum local.

O livro ensina: o olhar distanciado é recheado de imprecisões. Uma das principais compreensões de Foote-Whyte foi considerar que, mesmo marginalizada, a comunidade proveniente de imigrantes italianos era extremamente organizada, com regras, formas de convivência e hierarquias próprias de uma localidade esquecida pelos poderes públicos. Ali, dividiam-se os ‘rapazes de esquina’ (sem expectativas de ascensão social), os ‘rapazes formados’ (aquele que ascenderiam), os gângsters (provenientes do tráfico de bebidas possibilitado pela Lei Seca que vigorou nos EUA entre 1920 e 1933), o suborno e a extorsão como práticas de segurança pública (um tipo embrionário das nossas conhecidas milícias) e as figuras políticas aproximadas, as quais utilizavam a região como ponte para o poder.
Para além dessas hierarquias sociais e simbólicas que a etnografia de Foote-Whyte descreveu com precisão, é o componente da imigração que nos interessa aqui. Lembrei, no início do texto, que a Segunda Guerra Mundial se aproximava e o fascismo italiano ganhava corpo na Europa. Um dos medos da sociedade americana era de que aqueles ‘marginais’ se rebelassem contra o país acolhedor e utilizassem da anarquia (outra corrente temida pelo imaginário nativo) para o ataque e destruição daquela sociedade.
Sacco e Vanzetti
Um dos casos mais emblemáticos desse período, e citado por um dos pesquisadores associados no anexo da obra, tratava do julgamento e da condenação de Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti, executados pelo Estado em 23 de agosto de 1927. Ambos se identificavam pelo anarquismo e pelo movimento operário e sindical, e foram acusados de furto seguido de dois assassinatos em uma fábrica em South Braintree (a 22 km de Boston), também localizada no estado de Massachusetts. Encontrados com armas de fogo, algo comum na época, a filiação ao anarquismo italiano foi um prato cheio para a condenação midiática de uma série de conflitos que marcavam a sociedade estadunidense entre capitalistas burgueses e trabalhadores anarco-sindicalistas nos anos 20. Cinquenta anos depois da execução penal, o governador do estado de Massachusetts os absolveu pelo erro judicial de uma “sociedade preconceituosa, chauvinista e perversa”, como proferiu o jurista Edmund Morgan, da Universidade de Harvard.
Brasil para os brasileiros

No Brasil, a perseguição a imigrantes de nacionalidades inimigas também aconteceu, especialmente durante o Estado Novo. Neste período, Getúlio Vargas proibiu expressamente as escolas ensinarem diferentes idiomas, exigiu a exclusividade de professores brasileiros nas salas de aula e nomenclaturas relacionadas apenas ao português. A censura chegou até a imprensa de nicho estrangeiro, com a obrigatoriedade de redatores nascidos no Brasil, até culminar na proibição de toda publicação em língua estrangeira. No decurso da guerra, os inimigos – do Eixo – foram os mais visados. Grupos italianos trocaram suas identidades e bairros de origem japonesa tiveram suas memórias apagadas.
Essa representação do outro como o indesejado, o estranho e o perigoso foi tônica em diversos períodos da história e amplamente registrada e produzida pela imprensa das referidas épocas. Uma pesquisa da historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro (USP) revela algumas dessas imagens, assim como a tese de Gustavo Barreto, defendida sob orientação do idealizador dessa página, o professor titular da UFRJ Mohammed ElHajji, que contribuem para tal construção de estereótipos ideais para a redução do outro.
O clássico redescrito para a vida brasileira
Voltando à Sociedade de Esquina, a pesquisa em Cornerville apresenta outras proximidades com o Brasil. Um primeiro aspecto se relaciona a uma tendência que parece ser geral na geografia migrante. O bairro, que viria a ser chamado de Little Italy, anteriormente fora ocupado por imigrantes irlandeses. Só em 1860, a partir da chegada mais contundente de genoveses, do norte italiano e, décadas depois com sicilianos e napolitanos, do sul do país, o bairro ganhou nova preponderância cultural, embora a ocupação territorial das camadas em mobilidade se distingam pela heterogeneidade do convívio forçado entre trabalhadores provenientes de diferentes lugares. Longe da etérea homogeneização que fazem muitos brasileiros ao tratarem os imigrantes africanos como parte de uma única etnia, fruto do baixo conhecimento sobre aqueles que se encontram fora do eixo predominante da cultura.
Tal convívio, gerado e aprendido no decorrer da experiência migratória, está associado ao custo acessível das moradias, ao conjunto de organizações assistenciais presentes na região, como é o caso do Baixo Glicério e da Missão Paz, em São Paulo, e aos laços afetivos aglutinadores dessas comunidades estrangeiras. Determinadas regiões permanecem sendo majoritariamente de imigrantes, mesmo com as transfigurações culturais produzidas pelas novas levas de imigrantes e migrantes internos.
E o segundo aspecto da aproximação dessa etnografia com o Brasil? Se os irlandeses e italianos diversificaram aquele estrato territorial de Boston, tornando-o hoje um atrativo cultural de raízes italianas, como é o caso do Brás e da Mooca, na capital paulista, e Santa Felicidade, em Curitiba, Boston também pode ser considerada uma ‘filial’ da região do Vale do Rio Doce nos Estados Unidos.

Especialmente Governador Valadares, cidade mineira com cerca de 280 mil habitantes, que desde meados do século XX já apresentava um fluxo de brasileiros dessa região para Boston. A explicação, vejam só, também se encontra pelas guerras mundiais, na extração mineral da mica pelos EUA, entre as décadas de 1930 e 1940, um produto fundamental para aparelhos de comunicação utilizados nos conflitos bélicos. Com o interesse na região, os ‘vizinhos do norte’ investiram e deixaram um pouco de si, incluindo um escola de inglês fundada por um casal de imigrantes que resolveu se estabelecer de vez no país após o engenheiro americano concluir seu trabalho na ampliação de uma ferrovia. O censo de 2010 indicou que a cidade do interior mineiro é a sétima em emigrações internacionais, embora o sonho americano existente desde a década de 1960, pelo menos, tenha se tornado cada vez mais ‘ilegalizado’ pelas políticas restritivas.
É verdade que o tempo se move como os indivíduos no espaço. A Little Italy de Foote-Whyte certamente não se reproduz com fidelidade na atualidade, sobretudo pelos projetos de revitalização e o consequente encarecimento das áreas antes povoadas por trabalhadores imigrantes. No entanto, a compreensão do passado auxilia – ou determina – as formas pelas quais enxergamos o presente das arquiteturas do cotidiano e permite ao transeunte, seja um turista ou um residente, o cultivo das experiências do chão em que pisa. Essa parece ser uma das contribuições entre tantas as vinculadas à obra Sociedade de Esquina, como a certeza de que olhar desde dentro – e, consequentemente, para dentro – é a mais primorosa forma de enxergar as complexidades explicadoras das sociedades.
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Otávio Ávila
Pesquisador de doutorado do Diaspotics/UFRJ e editor do oestrangeiro.org