As migrações possuem diversas causas, porém todas são carregadas de um desejo de encontrar algo melhor do que se deixou. Há esperanças de descobrir um lugar que possa também chamar de casa, um lugar que acolha e onde se possa viver em segurança. Sobretudo nas migrações forçadas, encontrar um lugar onde não mais se esteja à mercê de violências e abusos dos direitos humanos torna-se ainda mais crucial. No entanto, o país para o qual se migra nem sempre consegue reunir e oferecer todas estas condições.

Inversamente, com frequência o migrante passa a ser vítima de novas formas de violência no país de “acolhimento” e dessa forma revive traumas antigos e que ainda resistem. A noção de espaço social é sugerida por Bourdieu (1983, 1986b e 1989) como a definição de um território no qual é possível perceber as estratégias daqueles que disputam no mesmo campo lutas para a manutenção ou a melhora do lugar social ocupado nele a partir do capital cultural (CUNHA, 2007, p. 503). Nesse espaço social o migrante permanece excluído e o acesso a toda ajuda é escasso e difícil. 

Migrar traz infinitas possibilidades de encontros ou desencontros. Diante da “nova cultura” o estrangeiro busca decifrar e eventualmente incorporar o que é possível desse novo. Esta experiência possui uma dinâmica entre o estranho e o familiar que num tempo próprio de cada sujeito permite estabelecer sentidos. Estes organizam um equilíbrio mesmo que precário para si e diante da nova cultura. Nessa dinâmica entre o estranho e o familiar o trauma também pode se ver despertado. As vezes são pessoas nas ruas que pensamos ter reconhecido, outras são lugares, detalhes que convocam o sujeito diante de sua história e as marcas guardadas zelo.   

Minneapolis

Vivo há cerca de dois anos e meio em Minneapolis, a cidade que no mês de junho foi palco de um importante levante dos movimentos sociais em torno dos direitos civis da população negra. O brutal assassinato do George Floyd teve o efeito de despertar aquele torpor moral em que muitos se encontravam. Longe de ser um caso isolado, a certeza da impunidade é uma das razões que mostra nesse ato a necessidade de dizer chega. Se os protestos começaram depois que as imagens de um policial empurrando seu joelho por 8”46 segundos no pescoço de um homem até sua morte, ele cresce e se propaga devido à uma complexidade de fatores. Desde New York, Paris, Londres, Rio de Janeiro, São Paulo, Sidney, Roma, as pessoas foram as ruas contra a violência policial, a exclusão social e sobretudo o racismo. 

StreetArtMourning
Crédito: Suzana Duarte Santos Mallard

Minneapolis e Saint Paul são consideradas cidades gêmeas e juntas configuram a região mais populosa do estado. Em seu território existem 22 lagos e lagoas e cerca de 170 parques. O clima é frio, com invernos longos e gelados e verões quentes. A área urbana da cidade se estende por cerca de 150 quilômetros em sua maioria plana junto ao distrito de St. Paul e Bloomington. Os primeiros habitantes da região eram os povos Sioux e Ojibwa cujas terras foram gradativamente tomadas e ocupadas pela ocupação de colonos. Ao longo da sua história, os habitantes da cidade eram em sua grande maioria de ascendência europeia da península escandinava, mas essa proporção com o passar do tempo foi diminuído enquanto houve um aumento do número de afro-americanos, asiáticos e hispânicos. Hoje, a população branca soma 85,9% de toda a população do Minnesota.

Desde 1976 o Estado passa a receber refugiados de diversas origens e atualmente existem comunidades numerosas de refugiados do Afeganistão, Bielorrússia, Butão, Burundi, China, Congo, República Democrática do Congo, El Salvador, Eritreia, Etiópia, Irã, Iraque, Cazaquistão, Quénia, Moldávia, Myanmar, Nepal, República do Sudão do Sul Rússia, Somália, Sri Lanka, Sudão, Síria, Tanzânia e Ucrânia, segundo o Departamento de Estado Americano. Em 2018, os maiores grupos de minnesotanos de origem estrangeira nasceram no México (cerca de 64.500); Somália (33.500); Índia (30.200); Laos, incluindo Hmong (24.400); Vietnã (18.600); China, excluindo Hong Kong e Taiwan (18.600); Etiópia (21.900); e Tailândia, incluindo Hmong (18.500). Essas estimativas não incluem os filhos nascidos nos EUA desses imigrantes e subestimam o tamanho de imigrantes devido aos problemas de confiança e idioma que comprometem as taxas de resposta às pesquisas do Census (2018).

A diáspora somali é a segunda mais numerosa, logo depois do México. Ela é das mais antigas na cidade e conta aproximadamente com 100 mil pessoas. Esse número soma os que chegaram em 2018, os que nasceram aqui e aqueles que desde os anos 80, a partir de programas de intercâmbio, negócios e em função da guerra civil nos anos 90 fizeram aqui seu novo lar. 

Mesmo com toda sua diversidade, é uma cidade extremamente segregada através de mecanismo que modelaram restringiram grupos em determinados espaços. No início de 1900, os convênios raciais para a habitação impediam a venda de casas para as minorias, estabelecendo padrões de desigualdade que persistem até hoje. O dispositivo chamado de red line (linha vermelha) delimitava geograficamente os locais nos quais as minorias poderiam adquirir suas habitações.  O investimento nos diferentes locais da cidade foi desproporcional. Nas regiões nas quais as minorias moravam as famílias se aglomeravam em casa compartilhadas por vários núcleos. Nestas mesmas regiões havia prédios que concentravam, prática que pode ser rastreada em outras cidades americanas já a partir do século XX, como Nova York, São Francisco, Washington, DC, Seattle, Portland, Detroit.

Credit- Eric MillerReuters
Manifestação em Minneapolis. Crédito: Eric Miller/Reuters

As Cidades Gêmeas estiveram comprometidas com os direitos civis e a integração racial durante grande parte da década de 1970. No entanto, a partir da década de 80, esse interesse se esvazia. A apatia política impediu que medidas fossem tomadas para reverter o quadro da desigualdade racial agravado pelas práticas habitacionais excludentes nos subúrbios. A crescente preocupação, com a disponibilidade de moradias populares, acelerou o crescimento do setor de moradias e fez prosperar a indústria do PHI (Poverty Housing Industry). Nestas habitações populares estavam concentradas famílias negras, migrantes e nativas. Localizadas em áreas de baixa renda, esta condição contribuiu para o aumento da segregação de determinados grupos como também o gap econômico social e educacional.

O sistema público educacional no estado tem um orçamento que, em parte, depende das contribuições dos moradores da região fazendo com que suas escolas contem com poucos recursos diante da complexidade de demandas que recebem da população – alimentação, material escolar, apoio psicossocial. Estas acabam sendo regiões concentradoras de injustiças sociais que prendem, como numa espécie de espiral, esta população sujeita a limitações e barreiras que torna quase impossível se subtrair de um futuro de fracassos que afeta a saúde física e mental. Além da segregação que se traduz neste sistema de moradias excludentes, ao sistema de ensino precário e a violência policial para alguns, existe ainda a experiência de ser negro na cidade, portanto de lidar com o racismo.

Distinções raciais

De acordo com o US Census de 2019 os negros somam aproximadamente 20% da população total da cidade, mas apenas 7,4% do Estado. Negros têm 2,5 mais chances de serem mortos numa abordagem policial do que brancos (Mapping Police Violence, 2019). Sessenta por cento das abordagens policiais são dirigidas a esta população. Desse grupo fazem parte os inúmeros migrantes das mais diversas origens e etnias. O racismo, mais uma vez expresso nas violências policiais, é mais uma realidade com a qual esta população lida todos os dias. Por isso, nas manifestações que se sucederam após o assassinato do George Floyd sua presença foi significativa, como a comunidade Somali, a mais participativa durante os protestos e confrontos. Este grupo em Minneapolis e em outras partes do Minnesota mesmo antes de junho de 2020 vêm tendo conflitos regulares com as autoridades policiais. (Saiba mais)

A maioria vive em Minneapolis e St. Paul, agrupados em prédios no bairro como Cedar-Riverside, Habitações com muitas precariedades nos quais alguns acidentes como incêndios e explosões já foram registrados. Nesse mesmo bairro existe uma área conhecida como Little Mogadishu. Um mercado labiríntico entre as casas mais tradicionais da cidade. Alguns imigrantes somalis dizem que são gratos por poder reconstruir suas vidas aqui. No entanto, o brutal assassinato que durou quase nove minutos e a repressão dos manifestantes que protestavam inconformados relembrou um horror familiar. Situações come esta remetem as violências que eles mesmo sofrem diariamente, mas também os abusos de poder que eventualmente levaram ao colapso da sociedade civil em seu país e os obrigaram a pedir refúgio. (Saiba mais)

A presença nos protestos foi uma revolta ao brutal assassinato e ao racismo que é perpetrado nas diversas formas de violência contra a população negra que são frequentes na cidade. Muitos seguravam cartazes que diziam “Black Lives Matter“, enquanto outros se ajoelhavam. Foram muitos dias de protesto. Em alguns, os manifestantes ficaram em silêncio pelo tempo que Floyd lutou para respirar enquanto os policiais o detinham. Em outro a multidão entoava em coro frases como: “No justice no Peace, Prosecute de Police!”. Aleatoriamente alguém na multidão com megafone ou não puxava a frase: “What do we want?” à qual um coro de vozes respondia “Peace”, e de novo: “When do we want it?” e o coro: “Now”.

Parem de nos matar Creditos Sputnik Brasil
Manifestações aconteceram também no Rio de Janeiro. Crédito: Pilar Olivares/Reuters

Em meio a uma pandemia, milhares de pessoas desceram as ruas com uma causa comum. O assassinato não foi um caso isolado, mas devido a um conjunto de fatores se produziu um efeito inesperado e que comoveu e moveu milhares no país e no mundo. Foram meses de confinamento, um privilégio que poucos puderam gozar no conforto de suas casas. Depois veio o desemprego que atingiu as massas, mas que desestabiliza alguns mais do que outros. Talvez tenhamos chegado ao limite, quem sabe as injustiças repetidas ou ainda pelo fato de ter sido filmado. 

Uma realidade partilhada no mundo

Para a comunidade somali, esta realidade relembra os horrores vividos em seu país em conflito. Para mim ela evoca algo familiar, a violência e o racismo em terras brasileiras. Esta é uma realidade que brasileiros pobres e migrantes compartilham “democraticamente”. Os migrantes que chegam sem recursos passam a viver em locais sem segurança. Lugares muitas vezes controlados por milícias ou traficantes onde junto com os locais seguem na disputa pela sobrevivência. Com poucos recursos e na ausência do poder publico devem disputar as poucas oportunidades com aqueles que já estão à margem da sociedade. Os cenários de violência são muitas vezes gatilhos que despertam para uma parcela da população migrante medos, angústias e lembranças do que fora vivido em seu país e que de alguma forma se repete. Migrantes refugiados do continente africano relatam o aumento de ameaças e agressões xenófobas e racistas. Violências que matam como no recente caso do João Manuel, angolano morto após uma discussão sobre o pagamento do auxílio-emergencial federal para imigrantes.

A violência não chega a ser denunciada em muitos casos. Sem documentação e por ter entrado no território de forma não oficial, a vítima fica com medo de expor a violência sofrida e o perpetrador fica impune. Esta é a realidade vivida por muitos dos venezuelanos que migram para o Brasil. O fluxo migratório deste povo é o maior registrado até o presente na América do Sul. Segundo a ONU, foram cerca de 3 milhões aqueles que deixaram seu país em fuga do regime do Nicolás Maduro desde 2014. No território brasileiro chegaram cerca de 400 mil através da fronteira com Roraima. Em Pacaraima, Roraima e Boa Vista os venezuelanos que migram buscando melhores oportunidades são cotidianamente alvo de agressões fatais. Estas são frequentemente estimuladas pelas autoridades, conforme apontado pela investigação do veículo de imprensa The Intercept Brasil, e dificilmente encontram as oportunidades desejadas.

Migrantes Venezuelanos Creditos Vincent Tremeau
Migrantes venezuelanos. Crédito: Vincent Tremeau

No Brasil, a cada 23 minutos um George Floyd é morto em confrontos policiais. Desde a instalação da necropolítica promovida pelo atual governo, os policiais obtiveram uma licença para matar. As ações policiais têm se mostrado mais agressivas e muita mais gente morre em decorrência disso. Não há muito tempo, comoveu o caso do menino João Pedro, 13 anos, e o da menina Ágatha, 8 anos, ou caso do Francisco Laércio de Paula Lima, 26 anos, executado quando voltava para casa. Todos mortos pela Polícia Militar. Além das vítimas fatais, as abordagens policiais e prisões também atingem de forma desproporcional a população negra e pobre do país. Em tema de abordagem viralizou na mesma semana a cena do policial militar pisando no pescoço de uma mulher de 51 anos e de um motoboy que participava de uma manifestação que pedia melhores condições em seu exercício profissional. Todas essas vítimas são negras. Fica mais uma vez patente o crivo racista que pauta estas intervenções que só chegam à opinião publica porque filmadas.

O racismo é ignorância baseada em deseducação. Ele é o resultado de uma doutrinação que se substitui a educação, afirmou a pesquisadora Jane Elliott ao The New York Times. Em 1968 ela conduziu um experimento com seus alunos no intuito de ensinar que não se pode julgar o outro sem antes experimentar o que estar no lugar do outro. Mais de 50 anos depois do seu experimento Olhos azuis, olhos marrons muito pouco mudou. Preconceito e racismo fazem parte das estruturas dominantes da nossa sociedade como um todo.

No Brasil, nos Estados Unidos, na Europa, na Ásia, no Oriente Médio, as violências motivadas pela intolerância do outro cuja diferença resta intolerável seguem mesmo diante da mobilização da sociedade civil. Os migrantes que buscam segurança e oportunidades dificilmente as encontram. Alguns só conseguem oferecê-las para outra geração, seus filhos ou netos. As mudanças, há tempos devidas e necessárias, precisam se dar de forma estrutural. Precisamos de ações de reparação histórica imediatas e mais concretas, de medidas de inclusão mais efetivas e da capacidade de cada um de renunciar um pouco aos seus privilégios adquiridos e mantidos as custas de outros. Elas são determinantes para uma sociedade mais justa e igualitária. 

 

Referências

BOURDIEU, Pierre. Les trois états du capital culturel. In: Actes de la recherche en sciences sociales. Vol. 30. L’institution scolaire. 1979.

CASTLES, Stephen; HAAS, Hein; MILLER, Mark. The Age of Migration International Population Movements in the Modern World. 5ª ed. 2014.

CUNHA, Maria A. O conceito “capital cultural” em Pierre Bourdieu e a herança etnográfica. Perspectiva, Florianópolis, v. 25, n. 2, 503-524, jul./dez. 2007.

INTITUTE ON METROPOLITAN OPPORTUNITY. Why Are the Twin Cities So Segregated? 2015.

 

Suzana Duarte Santos Mallard
Doutoranda em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social pela UFRJ e membro do Diaspotics.