No mês de novembro, conheci um imigrante argentino que mora no Brasil e decidi escutá-lo em um áudio de grupo de whatsapp sobre sua história de vida. Seu relato me levou a trazer sua narrativa para mais um texto promovido pelo oestrangeiro.org. Fiz contato e questionei se ele gostaria de contar sua história, que segue resumidamente neste texto. Em alguns momentos, busco mesclar um pouco das linhas teóricas de Abdelmalek Sayad e Mohammed ElHajji para me apoiar nesta escrita.

O entrevistado não será identificado seguindo o pedido de privacidade. Ele é argentino e jornalista. No seu país, trabalhava como professor universitário e exercia sua formação acadêmica em um programa de rádio local. Chegou a ser diretor do programa, mas viver na Argentina deixou de ser uma opção por motivos pessoais e políticos.

A escolha pelo Brasil não se deu à toa. Casado com uma brasileira que habitava em Curitiba antes de morar na Argentina, a familiaridade com a capital paranaense os levou a viver nela. Quando chegou ao Brasil com seus dois filhos argentinos e sua companheira brasileira, ele imaginou que o seu currículo de longa jornada em radiojornalismo e como docente universitário abriria imediatamente as portas. Esta ideia foi se modificando ao perceber as várias diferenças existentes entre o Brasil e a Argentina – e que não ficavam somente na questão do idioma.

Aqui, ele percebeu valores distintos para o rádio e entendeu que seus títulos precisariam de uma equivalência de currículo, na qual o faria retornar aos bancos universitários por pelo menos 2 anos.

Estas dificuldades burocráticas – se é que podemos dar este nome – me remete a Sayad em sua fala sobre a discriminação de direitos e discriminação de fato, na qual uma atribui a justificativa da outra se sustentando mutuamente e encontrando o princípio de todas as segregações e de todas as dominações geradoras de racismo. Este ponto ainda parece fortalecer o apelo incessante e insistente para que os imigrantes refugiados se lembrem que devem se conformar ao imperativo segundo o qual eles continuam sendo dispensáveis e expulsáveis, o que nos faz acreditar que o imigrante se encontra em uma situação excepcionalmente diferente daquela do trabalhador nativo.

Como diz ElHajji, “a migração é, em si, um movimento duplo e dúbio, no qual imigração sempre equivale a emigração, chegada a partida, expectativas a frustrações, sorrisos a lágrimas” (2011, p. 2).

Com todos estes obstáculos e a urgência de se ver novamente ativo e sustentando sua família, levou-o trabalhar como motorista de aplicativo. Este processo o instiga a pensar sobre quem ele é aqui e o que faz pertencer a este país.

De acordo com ElHajji (2011, p. 2), “a migração também significa a possibilidade de hibridizações, cruzamentos subjetivos, afetivos, simbólicos, imaginários e materiais […] São laços de sentido que se tecem, se intensificam e se densificam, costurando a teia simbólica global que vem cobrindo o mundo e transformando a sua morfologia social e humana a todos seus níveis; desde o discursivo e imaginário até o físico e biológico […]” o idioma não está à parte desta transformação produtora de diferenças.

Segundo ele, a língua o diferencia do “outro”, o faz se sentir diferente e, assim, nesta diferença, que ele vê o outro. Afirmou ter ouvido que em 3 anos “perderia” seu sotaque, embora não fosse isso que ele gostaria, pois o acento é parte de sua identidade. É o sotaque que mostra sua diversidade, aproxima-o de outro imigrante e o faz pertencer a este grupo.

E nesta comunidade ele vai construindo sua rede baseado na vivência de histórias de vidas semelhantes. O relacionamento com outros imigrantes, segundo ele, projeta-o a um lugar onde se sente em um mundo amplificado da imigração. Neste país paralelo, vive ele e todos os imigrantes que aqui chegaram. É um local onde outras línguas são faladas, outros costumes são compartilhados e outras culturas vividas.

Neste paralelo, a luta dos outros passa a ser a sua também, como a do negro, do homoafetivo, dos descapacitados, do cego, do mudo e todas as outras minorias. “Você, sendo imigrante, é uma minoria, e é uma minoria que pesa muito”, diz associando-e a outras lutas por direitos. Não basta respeitar a diferença, é preciso apoiar a diferença como direito à diversidade. Somente respeitar, segundo ele, é uma atitude bastante passiva e, mais que passiva, individualista, rígida.

Como lembra ElHajji “migrar é, por si só, uma competência inigualável, uma prova irrefutável da tenacidade, espírito de iniciativa, pioneirismo e empreendedorismo do migrante. Ser capaz de abandonar sua terra de origem, suas redes sociais e familiares, sua língua, seus usos e costumes para enfrentar uma realidade desconhecida e, frequentemente, hostil não é – convenhamos – uma empreitada anódina e ao alcance de todos” (2013, p.149).

Referências

SAYAD, Abdelmalek. A imigração ou os Paradoxos da Alteridade. São Paulo: Edusp. 1988.

ELHAJJI, Mohammed. Mapas subjetivos de um mundo em movimento: Migrações, mídia étnica e identidades transnacionais. Revista Electrónica Internacional de Economía Política de las Tecnologías de la Informacíon y la Comunicación, v. 13 n. 2. 2011.

_________________. Comunidades diaspóricas e cidadania global: o papel do intercultural. Revista Esferas, Ano 2, n. 3, jul-dez. 2013.

Flavia Arpini
Psicóloga, mestranda em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social pela UFRJ e membro do Diaspotics.