A dupla presidencial. Crédito: Harsimran Makkad / The Daily Princetonian

Desde as primeiras horas de seu mandato algumas resoluções e decretos assinados pelo novo presidente Joe Biden fazem muitos respirarem aliviados. Não somente comemorando o fim da era Trump, mas celebrando o que se anuncia ser o início de um novo tempo para milhares de migrantes e pessoas indocumentadas que residem no território ou que buscam chegar até ele. São iniciativas importantes e longamente esperadas, mesmo se mínimas diante do colossal trabalho que ainda resta a fazer para repensar o próprio paradigma migratório.

A migração é comumente tratada na perspectiva de crise que deixa de questionar as escolhas que tornam tão difícil a mobilidade. As iniciativas criadas com base em políticas que criminalizam a escolha de migrar de alguns grupos se concentram em medidas assistencialistas que servem a, sobretudo, interesses econômicos. Os EUA possuem uma política migratória que sempre esteve associada à questão da segurança nacional e pautada em iniciativas de controle ostensivo da fronteira e da regulamentação do processo migratório. Ela criminaliza quem busca proteção de forma indocumentada. Todos aqueles que são admitidos no território sob o estatuto de refugiado precisam ser reconhecidos antes de chegar.

Sob o governo Trump, as mudanças sobre a politica migratória foram promessas de campanha rapidamente tornadas ordens judiciais que tiveram impacto imediato no número de acolhimentos oficiais no pais. No entanto, estas medidas não reduziram o fluxo de pessoas em busca de proteção e melhores condições de vida. De um lado, esta redução deixou milhares de pessoas que aguardavam o julgamento de solicitação expostas a violências; de outro, permitiu a criação de mecanismos para punir aqueles que eram pegos e dissuadir outros. Foram construídos centros de detenção comparados a prisões ou campos de tortura que separaram e colocaram em celas improvisadas famílias, e condições desumanas que levaram a óbito crianças e adultos. Foram muitas as organizações que se mobilizaram para denunciar os maus tratos que as pessoas eram submetidas, situação que gerou crescimento de acampamentos improvisados na fronteira dos EUA com o México, onde milhares ainda aguardam em situação de total descaso, insalubridade e sem perspectiva, agravados durante a pandemia da Covid-19.

Numa eleição disputada e que ameaçou a democracia do país, o partido democrático subiu ao poder com uma maioria não muito expressiva. Esta é a exposição de uma fratura profunda que divide os americanos e que se apresenta como um dos principais desafios do novo governo assumido no discurso inaugural de Biden. O novo presidente dos EUA escolheu iniciar seu mandado com o anúncio de diretrizes que sinalizam as direções que este governo pretende tomar que priorizam o combate ao coronavírus e atenção a medidas econômicas, de meio ambiente, reformas raciais e justiça criminal, proteção da população LGBT e das políticas migratórias.

Em primeiro lugar, o combate ao avanço do contágio do coronavírus e o plano de vacinas passa também a ser prioridade. Foi decretada ordem do uso de máscaras por 100 dias em qualquer estabelecimento, além de definir a meta de 100 milhões de pessoas vacinadas nos primeiros 100 dias de mandato. Outra medida bem recebida foi o pacote econômico de alívio para locatários e proprietários, além de estender a moratória que já estava em vigor desde o início da pandemia sobre os despejos e execuções de hipotecas residenciais e pausar o pagamento de juros de empréstimos federais para estudantes. Dentro do mesmo pacote econômico, o governo se comprometeu a pagar diretamente a cada americano o montante de 1.400 dólares e disponibilizar recursos para reabrir com segurança as escolas.

Uma série de ordens executivas prontas para serem assinada por Biden. Crédito: Chip Somodevilla/Getty Images

A terceira iniciativa foi reintegrar o acordo climático de Paris assumindo que o país é um dos principais emissores de carbono na atmosfera e que o desafio seria grande. A quarta é o compromisso com as reformas raciais e de justiça criminal e a criação de políticas para enfrentar as disparidades que esta repercute na habitação e saúde. Em quinto lugar, as proteções da população LGBT através da mobilização de recursos para prevenir a violência e o preconceito contra elas, também por meio da restauração da orientação nas escolas.

Por último estão as medidas a respeito das políticas migratórias com um primeiro passo que foi a rescisão do polêmico decreto imposto por seu predecessor sobre a proibição de viagens a determinados países, especialmente árabes, que restringia viagens e migrações de cidadãos do Irã, Líbia, Somália, Síria, Iêmen, Venezuela e Coréia do Norte, Quirguistão, Eritrea, Nigéria, Tanzânia, Sudão e Myanmar. Além de parar a construção do polêmico muro na fronteira com o México, o novo governo ainda se comprometeu em reconhecer a cidadania de mais de 11 milhões de americanos indocumentados.

Dentre eles, cerca de 30 mil pessoas da Libéria residentes no Minnesota também poderão obter a tão sonhada cidadania. O ex-presidente Donald Trump havia aprovado o Liberian Refugee Immigration Fairness Act (LRIF), em janeiro de 2020.  Desconfiados e acostumados com as ações anti-imigração de Trump, a maioria dos liberianos preferiu não aplicar temendo represálias. Muitos outros imigrantes durante esse mantado tiveram que se esconder ou procurar abrigo em igrejas para evitar a expulsão do país. Esta é a história de José Chicas, 55 anos, que morou por três anos no santuário de uma igreja da Carolina do Norte.

Trump nos últimos dias de seu mandato. Crédito: Doug Mills/Bloomberg/Getty Images

Historicamente, os Estados Unidos sempre lideraram o processo de reassentamento de refugiados, recebendo dezenas de milhares todos os anos. Assim como na Europa, a política estadunidense para refugiados tem origem nos acontecimentos em torno da Segunda Guerra Mundial. Com a assinatura da Lei dos Refugiados pelo presidente Jimmy Carter em 1980, deu-se início a uma nova dinâmica do refúgio que permitiu elevar cotas globais e direcionar as preocupações e projetos para atender essa população. Em 2001, com o atentado de 11 de setembro, foi sancionada a Lei Patriótica, incidindo negativamente no número de refugiados que deveriam ser acolhidos.

Desde 1975, os EUA receberam mais de 3 milhões de refugiados. Pouco mais de 636 mil foram durante o governo de Barack Obama, quando o número de refugiados anuais aceitos no país passou de 85 mil para 110 mil entre o ano fiscal 2016 e 2017 (US Department Of States 2017). Com a mudança de governo, em janeiro de 2017, o novo presidente Donald Trump emitiu ordens executivas para reduzir o teto de admissão de refugiados que passou de 110 mil para 50 mil, além da suspensão do programa de reassentamento de refugiados por 120 dias. Em 2018 e 2019, respectivamente, o número de pessoas admitidas não passou de 23 mil e de 30 mil. No ano fiscal de 2020, iniciado em outubro de 2019, o teto foi estabelecido em 18 mil. Para o ano fiscal 2021, esse teto foi fixado em 15 mil pela mesma administração, mas pelos sinais dados pelo governo Biden-Harris espera-se a revogação do mesmo. 

Mais informações aqui.

Os EUA são um país de migrantes e isso precede os marcos históricos das políticas migratórias e leis do refúgio. Colocando entre as prioridades de seu governo essa parcela da população, o presidente Joe Biden reconhece o valor de da contribuição dos migrantes. Ainda mais tendo o privilégio de dividir o mandato com a primeira mulher vice-presidente do país, Kamala Harris, filha de mãe indiana e pai jamaicano, cuja posse faz história – por mudanças que chegam tardiamente e longamente esperadas.

Na seção 1 da Ordem Executiva sobre a Revisão das Políticas e Prioridades de Aplicação da Imigração Civil publicada pela Casa Branca consta que:

“Os imigrantes ajudaram a fortalecer as famílias, comunidades, negócios, força de trabalho e economia dos Estados Unidos, infundindo criatividade, energia e engenhosidade nos Estados Unidos. A tarefa de fazer cumprir as leis de imigração é complexa e requer o estabelecimento de prioridades para melhor servir aos interesses nacionais. A política da minha administração é proteger a segurança nacional e das fronteiras, enfrentar os desafios humanitários na fronteira sul e garantir a saúde e segurança públicas. Devemos também cumprir o devido processo legal para salvaguardar a dignidade e o bem-estar de todas as famílias e comunidades. Minha administração redefinirá as políticas e práticas para fazer cumprir as leis civis de imigração para alinhar a aplicação com esses valores e prioridades” (Joe Biden).

#AbolishICE #NoMuslimBan. Crédito: Aaron Lavinsky/Star Tribune. 

Muitas ações da administração anterior que contemplam o universo das migrações precisam ser revistas ou reformuladas de acordo com os compromissos da nova. Nesse sentido, uma das medidas do novo presidente foi suspender as deportações por 100 dias. No Texas, um juiz partidário do antigo governo impôs uma restrição temporária à ordem executiva de Biden por 14 dias. Foi assim que o Immigration and Customs Enforcement’s (ICE) e o Costumer Protection Border (CPB) se apressaram em deportar imigrantes do estado de Louisiana para a Jamaica. Durante esse tempo, mais deportações foram planejadas. Abaixo assinados promovidos por coletivos e associações como o Daily Kos, UndocuBlack Network, Haitian Bridge Alliance, Black Immigrant Collective e National Domestic Workers Alliance recolheram milhares de assinaturas em poucas horas. Finalmente, a ordem foi revogada e as deportações canceladas horas antes de um novo voo decolar.

Comunicado da BAJI sobre a suspensão da deportação. BAJI/Reprodução Twitter.

Os desafios deste mandato que acabou de começar ganham destaque entre um acontecimento e outro. O certo é que as organizações e a sociedade civil também estão atentas para cobrar e exigir posicionamentos e medidas coerentes dentro de um projeto de sociedade mais justo para todos. O mundo está de olho, pois se espera que estes engajamentos saiam do papel e sejam o início de reais transformações num país que ainda sofre com as violências e guarda abertas as marcas de uma sociedade racista, segregacionista e de uma justiça parcial.

Suzana Duarte Santos Mallard
Doutora em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social pela UFRJ e membro do Diaspotics. Escreve dos Estados Unidos.