Passar a semana do dia 8 de março, data em que se comemora o Dia Internacional da Mulher, e não pensar nas questões sobre imigração da mulher, era o mesmo que fechar os olhos e fingir que este movimento está ligado apenas ao gênero masculino, o que não é verdade.
Segundo dados divulgados pelo Comitê Nacional para os Refugiados (Conare) na 4ª edição do relatório “Refúgio em Números”, em 2018 o Brasil tinha 6.554 pessoas reconhecidas como refugiadas, sendo 28% do gênero feminino e provenientes, em sua maioria, da Síria, da República Democrática do Congo, de Angola, Colômbia, Venezuela e outros.
Diante destes números fui convidada para realizar uma roda de conversa de um projeto chamado Faróis Acesos, cujo tema seria Os Desafios das Mulheres Refugiadas. Nesta roda estavam presentes três mulheres imigrantes refugiadas provenientes de Gâmbia, da Venezuela e da Síria. A primeira há cinco anos no Rio de Janeiro, a segunda há três anos, e a terceira há sete anos e residindo na cidade de São Paulo.

Nesta conversa, entre outras histórias lindas, emocionantes e ricas, escutei sobre suas histórias de saída dos países de origem, a chegada ao país de acolhimento, e como é ser mulher no Brasil e a diferença em relação aos seus países.
Mesmo sendo mulheres provenientes de países diferentes e culturas diferentes, a linha sutil que permeou nossa conversa e nos ligou através da identificação dos assuntos foi trazida pela participante da Gâmbia quando se identificou com o grupo dizendo: “nós todas temos histórias de vida totalmente diferentes, mas temos uma coisa em comum que é o deslocamento de um lugar pra outro, e isto independe da etnia, da cor e da religião”. Esta semelhança unificadora é um laço de sentido tecido que se intensifica e se densifica, costurando, como escreve ElHajji, M., (2011, p. 2), a teia simbólica global.
Com a identificação sinalizada, as mulheres falaram do deslocamento apresentando seus motivos: de conflitos armados, no caso da participante Síria; econômicos, no caso da integrante da Venezuela; e de fuga de um casamento infantil, no caso da participante da Gâmbia, que excluía a possibilidade, enquanto mulher, de estudar, buscar conhecimento e mudar sua realidade. Para todos os movimentos migratórios traçados por estas mulheres, a rede existente aqui foi ponto de apoio na rota para o Brasil, ou seja, ter amigos ou familiares que as acolheram sozinhas, com marido ou família, foi um facilitador e um criador de coragem.
Essas redes desenvolvidas pelos imigrantes, como diz Hajji e Escudero (2020), foram responsáveis por manter múltiplas relações – familiares, econômicas, sociais, organizacionais, religiosas e políticas – para além das fronteiras.
A comparação de Ser mulher em seus países e no território brasileiro, mais precisamente no Rio de Janeiro e São Paulo, continuou respeitando o padrão cultural do grupo de origem destas mulheres, o qual Schütz, A. (2010) descreve como o resultado de um ininterrupto desenvolvimento histórico e um elemento de sua biografia pessoal, que é o inquestionável esquema de referência de concepção do mundo. Com este pensar que as imigrantes desta roda de conversa apresentaram a interpretação de seu novo ambiente social nos termos do pensar habitual.
Com esta interpretação, a participante Síria disse que a única diferença está na roupa. No caso, ela se referia ao hijabe, roupa tradicional do Islã. A integrante da Venezuela se referiu ao machismo do homem brasileiro que coloca a mulher como incapaz de participar dos negócios e de negociar quando na presença de dois homens. Já a gambiana iniciou seu relato contando que em seu país as mulheres saem do status de mãe para o de esposa, ou seja, sempre sob o protecionismo do homem, enquanto aqui existe a liberdade da mulher fazer coisas diferentes independente de estar com um homem, ou não. Apesar disso, comentou: “sua potência, seu respeito, quem valida é seu esposo”. Continuou contando que por ser muçulmana, cobrir seu corpo era para ela muito violento, assim como o matrimônio infantil também, mas mais violento que isto é a hipersexualização do corpo da mulher no Brasil.
Após esta roda saí percebendo que o passado e o presente da história do papel da mulher na sociedade mudou, mas mesmo com toda a mudança, a conquista e luta por um lugar de pertencimento social, cultural, político e econômico, ainda precisamos, e muito, estabelecer mudanças para que estas sejam perceptíveis e marcantes.
Referências
CONARE. Refúgio em Números. 4ª edição. Ministério da Justiça e Segurança Pública, Governo Federal, 2008.
ELHAJJI, M. Mapas subjetivos de um mundo em movimento: Migrações, mídia étnica e identidades transnacionais. Revista Electrónica Internacional de Economía Política de las Tecnologías de la Información y la Comunicación, v. 13, n. 2, 2011.
ELHAJJI, M.; ESCUDERO, C. Webdiáspora.br: migrações, TICs e identidades transnacionais no Brasil. Porto Alegre: Editora Fi, 2020.
SCHÜTZ, A. O estrangeiro – Um ensaio em Psicologia Social. Espaço Acadêmico, n. 113, ano 10, out. 2010.
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Flávia Arpini
Psicóloga, mestranda em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social pela UFRJ e membro do Diaspotics.