O texto a seguir tem a forma de ensaio, reflexão, carta aberta, o que você quiser. São fragmentos do meu livro de cabeceira, da minha Bíblia pessoal e comum. Tem dois méritos: primeiro, é um texto pensado e escrito em português. (Sim, algo tão simples é uma conquista alcançada quando se tem outra língua materna, pensar em outra língua é cansativo, principalmente quando acaba-se de emigrar). Em segundo lugar, é escrito a partir das vísceras, a partir de minhas experiências, antes de eu ter as leituras de autores que falam de identidade (por isso tem a pureza da experiência). Enfim, serve para entender minha existência ressignificada com a migração e claro, compartilhada com o outro que me ressignifica.

Intervenção: de Moisés Antonio (Angola). Foto de propriedade coletiva dos alunos do curso de extensão para migrantes do PFOL da UTFPR. Autor: Cohovi Eudes Nandjo (Benin)

Ser migrante é uma das ações / estados mais difíceis que descobri que um ser humano pode fazer/ter.  Para aqueles que tiveram que migrar ou pedir refúgio, ou asilo, ou autoexílio como quem escreve, porque, por algum motivo, deixamos a nossa pátria e nos mudamos para outro país, é uma experiência única que pode ser dolorosa e, ao mesmo tempo, agradável. 

A dor do processo predomina, mas parece que em algum momento chegaremos a algum lugar e, então, isso é uma pausa de descanso. Mas é uma ilusão, não se chega a lugar nenhum, leva apenas alguns segundos, um tempo mais prolongado para reflexionar e logo continuar migrando, é por isso que é um estado, uma ação. É um processo que começa, mas isso nunca vai terminar. Talvez seja um processo que está sempre acontecendo e, na realidade, só nos conscientizamos de que isso acontece e, quando nos sucede, não podemos mais renunciar a isso. 

Talvez a migração mais tangível é externa, é a de deslocamento físico e, se for forçada, é mais penosa e os graus de dor são acentuados. Independente da posse formal de um visto humanitário de refúgio, sabemos que sua situação pessoal é a de um refugiado. São os exílios que tanto rasgam a existência. 

Mas, como foi dito, estas são as migrações mais tangíveis e onde os fatores externos podem ser mensuráveis e questionáveis não apenas por um, mas quase objetivamente por uma comunidade.  E, quando você migra, um estado particular é produzido: não é mais o que era, ainda não é o que será, não se sabe quem é naquele presente. Quando o migrante não está bem, quer ser o que era, mas quando consegue se recuperar, sabe que não pode voltar e não quer ser quem era. Uma complicada situação existencial, complicada para quem a vive e também para quem padece porque vive com quem está em uma identidade em trânsito. 

Com certeza seja essa a melhor definição de migrantes: identidades em trânsito. Eu falo de migrantes no plural, porque quiçá acreditemos que apenas um tipo de migração ocorre e na realidade existem muitas e há também várias que uma pessoa pode ter ao mesmo tempo. 

Meu auto reconhecimento como migrante e refugiado afetivo (este último termo é da minha própria conceituação que será objeto de outra análise) tornou visíveis os processos existenciais de migração e identidades em trânsito para mim. 

E agora que conheço o assunto por viver na minha própria carne, não posso deixar de levantar essa bandeira de migrantes e identidades em trânsito. É uma bandeira que eu defendo da minoria que se reconhece como migrante, mas na realidade não somos uma minoria, somos a totalidade porque todo ser humano está sempre migrando e -no nível existencial- sua identidade está sempre mudando. Alguns fazem isso drasticamente, violentamente, as condições o levaram a fazê-lo; outros, movam-se devagar, imperceptivelmente, até completarem o ciclo. Alguns, infelizmente, não se atrevem a iniciar o processo, ou até não se encorajam a reconhecer que estão no processo. É por isso que o termo identidades em trânsito é amplo, não se trata somente de um migrante que foi desterrado ou teve que fugir de seu país. É também uma identidade em trânsito que tem uma migração existencial interna. Esse movimento, esse processo iniciado apesar de dolorido, é positivo para o crescimento do ser humano.

O homem está sempre migrando, ele está sempre com sua identidade em trânsito. Se analisarmos a partir da psicologia evolutiva, nossa primeira migração foi do mundo aquático do útero materno para o mundo aéreo fora do corpo da mãe: depois migra de bebê para criança, de púbere para adolescente, de adolescente para a juventude, para a primeira vida adulta, para a segunda idade adulta, depois para a idade adulta madura, depois para a velhice. 

Para aqueles que são crentes (como muitas religiões monoteístas como o judaísmo, o cristianismo, o católico romano e o ortodoxo, o islamismo) é um migrante neste mundo que espera poder se mudar para outro mundo onde, finalmente, sua pessoa encontrará descanso. 

Também muda quem consegue romper com mandatos familiares para escolher seu próprio caminho. É um migrante e um peregrino, quem está angustiado por seu erro, quem reconhece que cometeu um desacerto e decide reparar sua falta e recomeçar, e quando ele recomeça ele não é mais o mesmo, ele é outro. Isso também acontece com aquele que saiu e decide voltar: aquele que retorna nunca é o mesmo que aquele que foi embora. E não é coincidência que o parto, como o ato de dar à luz a um novo filho, é parir. Parir significa expulsar, produzir, sair de um lugar para outro, assim como imigrar, o que agora suplantamos pelo término migração que apenas alude ao trânsito. 

Uma das migrações internas mais importantes é a busca pela identidade de gênero. Alguém pode dizer: “Não é uma migração porque eu sempre soube o que era”, mas em outros casos pode haver uma busca. Para o primeiro assunto, vamos responder que também é uma migração, porque é externalizado o que foi acordado culturalmente ou não. Então, é uma migração social.  Toda migração produz um quebre, uma ruptura com o lugar, com o contexto, com o estabelecido; envolve o transe aflitivo de se inserir, se enxertar, interagir, tentar viver junto, ser aceito pelos outros; em outro espaço, num tempo não planejado, mas presente, sem saber muito bem quem é, com uma identidade em trânsito. Então, esse trânsito faz parte da condição humana. É uma obrigação do ser humano ser permanentemente uma identidade em construção para ser cada dia mais humano. 

Mas muitas pessoas estão paralisadas e preferem ficar quietas, preferem a segurança do instituído. A inércia dá certeza, é por isso que a possibilidade de crescimento e mudança que estabelece o movimento que sempre implica a escolha de novos caminhos é rejeitada. Toda escolha é lancinante porque significa descartar outras possibilidades. Esta situação causa muita insegurança não só para quem decidiu transitar, mas também para quem percebe o trânsito do outro e, por medo, quer agarrar-se ao imóvel, à segurança que o establishment concede. 

Então, medo e violência aparecem como respostas imediatas ao que fica fora de ordem, para o qual algum trânsito começou. O medo é uma reação lógica ao desconhecido, ao que é percebido como pouco familiar e cotidiano, mas que se não for vencido, não deixa crescer ou ter a possibilidade de compartilhar com o outro e possuir, ou não, novas experiências. A violência é a reação mais cruel a esse medo natural e, em nenhum caso, justificável. Então, a falta de compreensão, de aceitação, de entrega… ao outro que aparece como diferente, distinto de mim. 

Ser capaz de conceber o outro de múltiplas maneiras é muito difícil para muitos. Talvez porque eles não estão cientes de que eles também são migrantes. É por isso que surge o medo: o estrangeiro que vem para tirar o trabalho quando não há trabalho para o de sua própria nacionalidade; aquele que fala outro idioma mas, aos olhos dos outros, ele deve falar a língua da maioria; quem tem outra cultura mas deve adotar a cultura hegemônica; quem pratica outra religião porque não está entre as reconhecidas; quem não acredita em uma fé ou organização social, porque seu comportamento é anárquico. O ódio também emerge: daquele que não reconhece a diversidade das cores da tez, das formas do corpo e pratica o racismo, incapaz de reconhecer que somos uma única raça: os seres humanos; ou o etnismo porque não entende a riqueza cultural. Surge o desprezo pelo medo de um “contágio” daqueles que sofrem: doenças terminais, deficiências, cegueira, surdez, mutilação. Todos eles parecem contagiosos e ameaçadores. Eles não percebem que todos nós temos alguma deficiência, e ela só é mais perceptível em algumas pessoas. 

Hoje, cobra maior visibilidade aqueles que por medo não admitem que há pessoas que são migrantes em seus próprios corpos porque não se identificam com o sexo com o qual nasceram ou com os comportamentos estabelecidos pela cultura dominante. A designação LGBTQIAPO+ ou qualquer outra, também não é apropriada porque rotula, classifica, cria novos preconceitos; mas ao mesmo tempo é necessária para poder ver o outro. 

Diante do trânsito existencial, surge primeiro o medo e depois a violência sutil ou a violência explícita. Elas se manifestam na discriminação, em trabalhos que não são alcançados, em espaços que não se tem lugar, por sotaques da língua que são ouvidos com desdém, movimentos corporais que são ridicularizados, deficientes que são descartados, identificações externas que vão desde um crucifixo até o hijab que são estigmatizados; ou simplesmente porque “seu rosto não me agrada”, “sua cultura não me agrada”, “sua língua eu não entendo”, “seu lado mutilado ou exacerbado não quero ver”, “sua religião ou seu ateísmo me incomoda”, “seu comportamento não tolero”, “sua cor de pele não aceito”, “sua escolha de gênero ou orientação sexual só me irrita”…

Todos estamos em trânsito, todos temos muitas vezes medo desse movimento existencial (de coisas tão comuns quanto o caso do pai ou da mãe que não aceita que seus filhos cresçam) e ninguém está isento de rejeitar a migração do outro por medo, mas a violência é inaceitável. 

Deveríamos ser capazes de nos reconhecer simplesmente como seres humanos, valorizar o que uma pessoa é com todas as suas diferenças e nuances e nos dar, o visto humanitário de nos reconhecermos em trânsito porque estamos sempre evoluindo, mudando, porque é parte de nossa identidade de ser humano estar em trânsito.                                      

Identidades em trânsito em plural.

Evangelho dos Migrantes e Refugiados 10: 1-30