Este texto é a segunda parte da entrevista que eu fiz com Gael Fuladio, congolês-brasileiro que trabalha na Cruz Roja Española Málaga. Nós nos conhecemos quando trabalhamos juntos na instituição, onde fiz meu estágio para o Mestrado Erasmus Mundus Mitra, da Université de Lille 3.
Na primeira parte, ele nos contou como foi sua empreitada migratória da República Democrática do Congo para São Paulo, narrando suas impressões e algumas das principais experiências que teve no Brasil. Nesta segunda parte, Gael nos conta como se deu sua ida do Brasil para a Espanha, como é o trabalho como monitor de um Centro de Acolhida Integral de Migrantes da Cruz Roja Española e quais são seus planos para o futuro.

Do Brasil para a Espanha
Quando morava em São Paulo, Gael Fuladio já pensava na possibilidade de ir à Europa e por lá ficar. Em 2016, seus planos eram de viajar para o continente, com dois objetivos. De passar férias em Málaga com seus primos, que moravam na Espanha, e de ir à França encontrar com sua mãe biológica, que iria da República Democrática do Congo para o país com o objetivo de fazer um tratamento médico. O segundo encontro nunca aconteceu: “Ela estava gravemente doente e não a deixaram embarcar no avião”, lembra Gael.
“Eu gostei da Europa, e queria saber como ficar”, conta ele. Depois de consultar um advogado em Madri, descobriu que por conta de problemas pessoais e, consequentemente, de ameaças que estava sofrendo no Brasil, tinha direito à proteção internacional na Espanha.
No sistema de acolhimento espanhol, quando uma pessoa tem sua solicitação de asilo aceita, como foi o caso de Gael, tem direito a viver em um Centro de Acogida de Refugiados (CAR) da Cruz Roja Española. O governo envia esse indivíduo para onde haja vagas e, concidentemente, no caso dele, foi enviado a Málaga, cidade onde havia passado férias. Ele viveu nesse Centro por 6 meses, durante os quais 3 teve aulas de espanhol e aprendeu o idioma.
Aprendendo espanhol e vivendo na Espanha
“Eu tenho facilidade para aprender novas línguas. Coloquei meu celular em espanhol e assistia filmes no idioma com legendas em francês, como um método de imersão”, me conta Fuladio.
O contato com outras pessoas também foi muito importante nessa trajetória. As relações com os espanhóis eram uma parte essencial dessa imersão: “A maior parte de meu entourage era de espanhóis, então é melhor falar um espanhol estranho, ainda que te corrijam, do que não interagir”, narra o jovem, que é uma pessoa muito comunicativa e carismática.
Alguns finais de semana com sua primeira namorada espanhola, em que iam para a casa de campo da família, foram importantes para conhecer a comida do país. “Aos poucos fui aprendendo a gostar de pratos como paella, lentilha…”, lembra Gael. “Especialmente nos primeiros meses na Espanha, eu fazia o esforço de cozinhar para mim comida brasileira e africana”, completa ele, ressaltando que nos últimos anos aumentou consideravelmente o número de mercados de produtos culinários africanos em Málaga.

De usuário a voluntário, estagiário e trabalhador da Cruz Roja Española
Enquanto vivia como usuário do Centro de Acogida de Refugiados da Cruz Roja em Málaga, Gael seguiu estudando. Ele fez um curso técnico em administração, área na qual trabalhava quando ainda vivia em São Paulo. Seu estágio final foi na Cruz Roja Málaga, local onde ele começou a trabalhar inicialmente como voluntário e não saiu mais. “Eu me inscrevi no programa de voluntariado da Cruz Roja principalmente porque queria me sentir útil para outras pessoas”, comenta ele sobre sua motivação para criar esse tipo de vínculo com a instituição.
O programa de acolhimento espanhol tem uma duração total de 18 meses, podendo chegar, quando são aceitos pedidos de prorrogação, a 24 meses. Gael Fuladio estava prestes a ter encerrada sua participação no programa e estava desempregado. “Eu já estava planejando ir viver com meus familiares em Bordeaux, na França, quando descobri a oferta para o posto de monitor na Cruz Roja”, lembra o jovem. “Era um novo Centro de Acogida Integral de Migrantes que ia abrir, em Málaga, em 2018. Apliquei para a vaga e fui aceito”, continua.
Até hoje ele segue no mesmo posto, há três anos e meio, como trabalhador do quadro permanente da instituição. As principais funções de um monitor desse tipo de centro são a gestão logística e a distribuição de alimentos, itens de higiene e de vestuário para os usuários; o apoio em atividades como saídas e workshops; além do apoio às atividades realizadas pelos voluntários.
Contudo, o que Gael mais gosta nesse emprego é outro aspecto de sua atuação, mais pontual e informal: “Para mim, a melhor parte de trabalhar neste centro é o apoio moral que eu dou aos usuários, porque eu vivi o que eles estão vivendo”, relata o jovem. “Tento inspirá-los. ‘Quando você saiu do seu lar e atravessou o Mediterrâneo para estar aqui, o que te motivou a sair para essa aventura?’, e transformar esta resposta em incentivo para que eles combatam as dificuldades do dia a dia”.
Os usuários dos centros humanitários e de asilo da Cruz Roja de Málaga são, geralmente, pessoas que chegaram à Espanha de maneira irregular. As principais rotas pelas quais chegam são o atravessamento do Mediterrâneo desde o Marrocos; a entrada na Espanha por terra, na cidade autônoma de Melilla; ou mesmo o trajeto de vários dias de barco no Oceano Atlântico, saindo do Senegal ou de Gâmbia, para chegar às Ilhas Canárias. Depois de passar por centros temporários da Cruz Roja em Tenerife, Las Palmas ou Melilla, muitos são enviados aos centros de Málaga.

“Eu quero ser uma voz para a juventude congolesa” e para os migrantes
Quando perguntado sobre seus planos para o futuro, Gael não tem dúvidas: “Eu quero ser uma voz para a juventude congolesa”, declara. O jovem congolês-brasileiro me contou que frequentemente se questiona sobre qual é a sua parcela de responsabilidade pela juventude de seu país, mesmo à distância. “Eu penso no que posso fazer, porque os jovens têm sua perspectiva de futuro seriamente ameaçada pelos políticos do país”, lamenta ele, que busca ideias para a execução desses planos na internet e nas redes sociais.
Gael também tem, hoje, a intenção de estudar Direito. “Quero conciliar os estudos com meu trabalho na Cruz Roja e me especializar em direito dos migrantes”, conta, completando: “Isso vai demorar, mas quero ser uma pessoa que passou por isso, um migrante, defendendo um migrante, o que é completamente diferente”. Uma atuação que, segundo ele, transcenderia a geografia e as fronteiras nacionais. “Pode ser na Espanha, na França, partout dans le monde”, sonha Fuladio.
“A migração me ajudou a conhecer a mim mesmo”
Ao falar sobre a sua empreitada migratória, que já é de quase uma década, ele ressalta a importância pessoal do percurso que começou na República Democrática do Congo, passou pelo Brasil e agora se dá na Espanha. “A migração, com tudo o que você tem que pensar, com o tempo que você passa sozinho, refletindo, me ajudou a conhecer a mim mesmo”, me conta o jovem Gael.
Ele reconhece o amadurecimento, o crescimento pessoal e o aprendizado resultantes dessa experiência, que um dia quer narrar em forma de livro. Pensando no Gael Fuladio que se mudou para São Paulo em 2012 e o de hoje, é categórico: “No caminho da vida, mon frère, eu aprendi bastante”.
João Paulo Rossini
Mestrando Erasmus Mundus MITRA: Migrations Transnationales, na Université de Lille 3