Andreiv Choma, 38 anos e residente em Curitiba, é bisneto de ucranianos que migraram para o Brasil entre o final do século XIX e o início do século XX. Vice-presidente da Sociedade Ucraniana do Brasil (SUBRAS), diretor cultural do Folclore Ucraniano Barvinok e autor do livro “Ucrânias do Brasil: 130 anos de cultura e tradição ucraniana”, em entrevista ao oestrangeiro.org ele comenta sobre a história da imigração ucraniana no Brasil e como a comunidade no país está lidando com o conflito que já deixou mais de 1,5 milhão de refugiados.

  1. O que estimulou seus bisavós a migrarem da Ucrânia para o Brasil? Eles se estabeleceram direto no Paraná?

Os migrantes ucranianos saíram de uma região chamada Galícia, no oeste da Ucrânia, que fica nas proximidades da cidade de Lviv, na fronteira com a Polônia. Na época das primeiras ondas, entre o final do século XIX e o início do século XX, essa área era uma província autônoma dentro do Império Austro-Húngaro, e havia ali uma escassez muito grande de terras. A maior parte parte delas, apesar da servidão ter sido abolida algumas décadas antes, estava nas mãos dos senhores, e por isso a população não tinha terra para plantar.

Os camponeses não conseguiam juntar dinheiro para comprar um pedaço de terra, e nesse contexto surgiu a propaganda do governo brasileiro na região, oferecendo terras no Brasil. Essa campanha da imigração fez com que muitos ucranianos viessem para o Brasil, a maioria para o sul do Paraná e o planalto norte catarinense – que nessa época, ainda antes da Guerra do Contestado, fazia parte do Paraná.

2. Como se deu esse processo migratório e como foi a adaptação dos familiares ao país? Quais as dificuldades enfrentadas? Que escolhas e renúncias tiveram que fazer? Quem mais ajudou eles ao longo do processo?

A primeira onda de imigração ucraniana oficialmente consideramos que vai de 1891 até mais ou menos 1915. Ao longo desse período, os ucranianos em alguns momentos tiveram apoio do governo brasileiro, inclusive com doações de terras; e em outros eles tiveram que pagar pela terra e pela viagem. Às vezes esse pagamento era feito através de trabalho na construção da estrada de ferro nas regiões de Paraná e Santa Catarina.

As dificuldades foram imensas, porque havia uma promessa de estrutura a ser oferecida para esses migrantes no Brasil, e na verdade quando eles chegaram o que encontraram foi basicamente uma estrada aberta no meio da Mata Atlântica, as florestas de araucária. Os homens costumavam ganhar um machado e uma enxada, enquanto as mulheres recebiam duas panelas; e era basicamente isso. Em algumas colônias existiam uns acampamentos de migrantes, mas não havia nada da estrutura que foi prometida. Então basicamente tiveram que começar do zero.

As primeiras famílias ucranianas no Brasil. Imagem: Museu do Milênio

Muitos deles nunca mais tiveram contato com os familiares na Ucrânia. No caso da minha família, a gente nunca mais teve notícias dos familiares que ficaram. Hoje em dia, 100 anos depois, eu tenho ido atrás disso e tentado descobrir exatamente de onde meus bisavós saíram e se ficou alguém por lá. Mas eles nunca mais tiveram contato com essas pessoas, e a maior parte desses migrantes foi direcionada para regiões aqui no Paraná que não eram habitadas. Ficavam muito distantes de um centro urbano, ou de uma vila que tivesse o mínimo de estrutura. Foram anos bem difíceis no início da imigração, e essa região começou a se desenvolver só depois da construção da Estrada de Ferro, entre as décadas de 1910 e 1920.

Sobre a viagem especificamente, eles saíam de trem das aldeias da Galícia até a cidade de Lviv, e aí seguiam novamente de trem até os portos da Alemanha ou Itália. Desses locais, faziam uma viagem de navio de aproximadamente um mês até o Rio de Janeiro, onde desembarcavam e faziam a quarentena. Depois, seguiam de navio até Paranaguá, e de lá iam de trem até Curitiba. Depois, iam de “carroção” até o trecho navegável do Rio Iguaçu, no Porto Amazonas; para daí se dirigir ao Vale do Iguaçu, que fica entre o Paraná e Santa Catarina. 

3. Qual percepção você tem do Brasil e da relação entre ucranianos e brasileiros?

Depois de mais de 100 anos de migração – contando os da primeira onda, os da segunda leva durante a Primeira Guerra Mundial e os da terceira onda, que vieram com a Segunda Guerra Mundial – esses ucranianos já estão completamente adaptados à sociedade brasileira e fazem parte do “balaio cultural” que é o Brasil. A cultura ucraniana que sobrevive com os descendentes já é parte da cultura brasileira: uma prova disso é que um dos símbolos de Curitiba é a pêssanka, um artesanato ucraniano que é também considerado um artesanato curitibano. Então os ucranianos e sua comunidade estão completamente inseridos dentro da realidade brasileira, não fazemos mais essa diferenciação entre ucranianos e brasileiros; e para nós é uma coisa só: somos descendentes de ucranianos que vivem no Brasil.

Uma descendente de ucranianos em sua residência, no Paraná. Imagem: Karime Xavier/Folhapress

4. E em relação aos costumes? Mantém os costumes ucranianos na família? Quais são os costumes da Ucrânia mais seguidos no dia a dia?

As tradições ucranianas estão mantidas e são bem presentes dentro da comunidade. Até hoje a língua, as canções, o folclore de maneira geral, a dança folclórica, o artesanato, as festas típicas e as tradições relacionadas especialmente ao natal e à páscoa são muito fortes e presentes. A culinária está no dia a dia da população e a religiosidade é muito forte. Os ucranianos no Brasil são de maioria católica de rito oriental, e toda comunidade ucraniana tem um igreja ucraniana e um padre ucraniano ou descendente de ucraniano, que celebra a missa em ucraniano… então tudo isso está muito presente dentro da comunidade ucraniana.

Igreja Ortodoxa em Prudentópolis, Paraná. Imagem: Paróquia São Josafat

5. Mantém contato com ucranianos que vivem na Ucrânia? Como se dá essa comunicação e com que frequência?

Por muitos anos a comunidade ucraniana no Brasil ficou um pouco isolada da Ucrânia por conta da própria União Soviética e das dificuldades de comunicação. Então não havia tanta proximidade. Desde a independência, essa comunicação voltou a fluir; e especialmente com a chegada da internet a facilidade ficou maior. Então temos muitos amigos que moram na Ucrânia, ucranianos vieram para cá, descendentes foram para lá estudar e passear… e aí se criou essa relação. Então boa parte da comunidade aqui tem pelo menos algum conhecido lá, e também acompanha a Ucrânia e os ucranianos pelas redes sociais. O contato é assim constante, com mensagens e viagens; e os grupos folclóricos também têm muito contato com as companhias de dança folclórica lá da Ucrânia.

6. Esperava a invasão russa sobre o território ucraniano? Qual sua opinião sobre a situação?

Desde a Revolução da Dignidade, em 2014, as pessoas esperavam essa invasão ou alguma tentativa do governo russo nesse sentido; e nos últimos meses isso ficou bem evidente. Sabemos também que o Putin não é uma pessoa exatamente normal. O que talvez nem todo mundo esperava é que ele fosse invadir o país inteiro. E, assim como todos os ucranianos, não só da Ucrânia, mas do mundo, nós achamos que é um grande absurdo, acho que você não vai encontrar um ucraniano que apoie a invasão do Putin em território ucraniano. É um Estado soberano, democrático, com um presidente eleito democraticamente, com uma boa parcela da votação inclusive. Então eu acho que ninguém esperava que fosse esse tipo de invasão.

7. Como estão os amigos e conhecidos que vivem na Ucrânia? 

Todos estão bastante assustados, por enquanto a gente tem a notícia de que, na medida do possível, estão todos bem, todos vivos. Temos mantido contato constante com essas pessoas, alguns conseguiram viajar para cidades mais interioranas com a família, outros ainda estão em Kyiv. Então temos acompanhando especialmente pela internet, e através do ambiente digital conversado com eles.

8. Como está a estrutura para proteger o povo ucraniano? Muitas pessoas estão pensando em sair do país?

Muitas cidades e casas ainda possuem áreas de proteção da época da Segunda Guerra que ainda estão ativas, e outras foram feitas ao longo dos anos, na era soviética e em outros tempos. As estações de metrô na Ucrânia são extremamente profundas, então muitos estão se escondendo nelas. Diversas casas também possuem porões, onde o pessoal acaba se abrigando. Com as pessoas que a gente tem mantido contato, nenhum está pensando necessariamente em sair do país neste momento, mas como eles não sabem o que vem pela frente, sair da Ucrânia não deixa de ser uma opção.

9. Qual sua opinião sobre a fala de Putin chamando a Ucrânia de “terra historicamente russa” e de que o Estado ucraniano é uma invenção criada por Lenin?

É uma das afirmações mais absurdas e assustadoras que já ouvimos. Com esse tipo de declaração, é como se ele tirasse o direito da Ucrânia de existir como nação. E a nação ucraniana existe há mais de mil anos, apesar de ter sobrevivido por muito tempo sem um território com limites definidos. Para você ter uma ideia, quando meus bisavós viram para cá, há mais de 100 anos, a Ucrânia não existia no mapa, e no entanto eu estou falando com você sobre a Ucrânia… ou seja,  a nação ucraniana continua existindo e vai continuar existindo, com linhas bem definidas do seu território ou não.

10. Pode comentar mais sobre os traumas coletivos que os ucranianos carregam e que são evocados com o conflito atual?

Há um problema muito grande de dominação da Rússia por muitos anos. Isso ocorreu ainda durante o Império Russo, mas também depois com a União Soviética. Ainda que fosse um país chamado União Soviética e não Rússia, era imposto à população ucraniana falar e escrever em russo. A língua ucraniana sofreu muito, assim como a cultura ucraniana. A União Soviética sempre tentava afirmar a cultura russa como superior. Acho que esse é um trauma bastante grande que carregam os ucranianos até hoje, e que reflete inclusive nesse momento da história do país.