As diversas crises internacionais que geram uma enorme quantidade de refugiados de diferentes locais nos levam a pensar sobre a aceitação de determinados grupos em relação a outros. A maneira que a mídia tem lidado com os refugiados ucranianos mostra essa diferença. Nesse período delicado, muitos repórteres e políticos reafirmam a necessidade de proteger uma população específica, de “europeus e civilizados”. E que portanto são diferentes dos indivíduos oriundos das regiões subdesenvolvidas do mundo, “acostumados com a guerra”, como seria o caso dos naturais do Oriente Médio, Ásia e África. Foi notório que países europeus buscaram se resguardar da entrada de refugiados afegãos após a retomada do estado afegão pelo Talibã, mas agora recebem seus pares brancos com toda a solidariedade do mundo ocidental.

Sabemos que esses casos não são novos, muito menos únicos. Ao longo da história, diversos grupos precisaram deixar seus países de origem e foram recebidos com hostilidade, enquanto outros foram acolhidos de braços abertos.  No caso dos japoneses no Brasil, vistos hoje como “bons imigrantes” e através do estereótipo da “minoria modelo”, por muito tempo foram tratados com desconfiança.

Acervo do Museu Histórico da Imigração Japonesa no Brasil: “Trapiche Municipal de Tomé-Açu. O único acesso à região era via barco. Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-53927273 

A chegada dos japoneses no país é acompanhada por um misto de preocupação com o perigo amarelo e uma propaganda muito positiva da “nação japonesa desenvolvida”, proveniente dos seus anos de expansão econômica. O discurso de desconfiança acerca dos migrantes cresce conforme a Segunda Guerra progride. Medidas restritivas direcionadas aos imigrantes japoneses, italianos e alemães limitavam o uso e ensino da língua, bem como práticas culturais e o contato com os países de origem. Os japoneses são particularmente afetados por essas políticas, dada a história de sua imigração e a facilidade de identificar esses grupos.

A localização da colônia japonesa na atual Tomé-Açu foi providencial para a sua conversão em um campo de concentração, onde foram isolados imigrantes japoneses e seus descendentes de diversas partes do Brasil. Devido às barreiras naturais (floresta amazônica e animais selvagens), os acessos à região eram bem restritos e limitados às vias fluviais. Uma vez tomados pelo Estado, as 49 famílias que residiam ali ficaram isoladas e passaram a ser tratadas como prisioneiros de guerra. Outros imigrantes oriundos dos países do eixo na Segunda Guerra também foram levados para o campo, mas a grande maioria era de famílias japonesas. 

Para esses sujeitos, que tiveram seus direitos, cultura e bens tomados de uma hora para a outra, a lembrança de como o governo e o povo brasileiro os vê permanece vívida. Porém, existem poucos registros escritos, fotografados e filmados dessa época; sendo existente uma memória mais oral dos japoneses que residiram em Tomé-Açu. Alguns imigrantes trazidos de outras regiões não conseguiram voltar para a cidade da qual foram tirados. Assim, perderam contato com as redes que haviam construído e até mesmo com familiares, tendo todo o trabalho para se estabelecer em um novo lugar e sendo obrigados a começar de novo sob condições precárias em um contexto agrícola

Essas memórias, apesar de serem transmitidas nos grupos que as experimentaram, não são tão difundidas entre os outros brasileiros de origem japonesa e ficaram marcadas como uma memória pontual do passado, justificada pelos tempos de guerra. Isso vale principalmente para os imigrantes do pós-guerra, que costumam ter uma visão mais positiva da experiência migratória, visto que fugiram de um grande sofrimento no Japão e foram melhor apoiados pelo Estado brasileiro. 

Esse caso exemplifica as formas que o amarelo toma enquanto sujeito no Brasil. Sejam focadas em nacionalidades ou em questões étnico-raciais, o fato é que com muita facilidade memórias evocadas de um dito “perigo” tomam o imaginário popular e rapidamente as representações de nações e povos tidos como “desenvolvidos” são esquecidas. Isso aconteceu durante a pandemia de Covid-19, quando ocorreram diversos casos de agressões físicas e verbais a amarelos (principalmente a chineses), relacionando esse grupo ao vírus. 

Existe um apagamento dessas memórias, que devem ser compreendidas para, assim, podermos questionar certas estruturas atuais. Esses casos não são disseminados pela população brasileira como um todo, causando surpresa em quem toma conhecimento desses eventos. Entender as representações sobre os diversos grupos minoritários nos permite identificar as agressões sofridas por eles. Obviamente não queremos dizer que os ucranianos, citados no início do texto, devam ser mal recebidos nos distintos países, mas é importante salientar o fato de outros grupos serem perseguidos, muitas vezes por conta de representações provindas de estereótipos e como, até hoje, determinadas guerras são justificáveis dependendo da região do mundo e do grupo prejudicado.

Referências 

DEZEM, Rogério. Matizes do “amarelo”: a gênese dos discursos sobre os orientais no Brasil (1878- 1908). São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2005. 

FONTANA, V. REED, S. Campo de concentração na Amazônia aprisionou centenas de famílias japonesas durante 2ª Guerra, BBC News Brasil, São Paulo,29 agosto 2020. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-53927273 

PERALTA, E. Abordagens Teóricas ao Estudo da Memória Social: Uma Resenha Crítica, in Arquivos da Memória: Antropologia, Escala e Memória, N.º 2 (nova série), Centro de Estudos de Etnologia Portuguesa, 4-23, 2007 

SÁ, C. P. Sobre o campo de estudo da memória social: uma perspectiva psicossocial. Psicologia: Reflexão e Crítica, v. 20, n. 2, pp. 290-295, 2007