Em meados da década de 90, o publicitário e jornalista chileno Eduardo Sáez, que vivia há quase 20 anos no Brasil, se encontrava na casa de um amigo chileno em Mairinque, São Paulo, onde ambos residiam. Durante a visita, surgiu um parente do anfitrião, também do Chile, que ficou enfurecido com a presença de Eduardo: “Tio, como você convida para vir aqui um chileno, você sabe que odeio esse país, sabe que odeio esse país de bosta, é uma merda, um país de ditadura que nunca nos deu nada”. O homem, sem conhecê-lo, ficou transtornado com sua presença, somente por conta de sua nacionalidade.
Para evitar maiores transtornos, Eduardo decidiu ir embora. Mas o ocorrido não saiu de sua cabeça: “Que culpa tem o Chile? Os homens passam, os governos passam, mas o país fica. O país é a nossa mãe. É a terra-mãe da gente“. Para manter vivo entre a comunidade chilena no Brasil1 o amor pela pátria de origem, decidiu que era a hora de a colônia chilena ter uma publicação própria. “Você sai do seu país, você sai da sua terra, mas seu país não sai nunca de você. Nunca. Ali estão suas raízes, seus bisavós, seus avós, seus pais, seus irmãos, seus amigos, seu primeiro amor, sua primeira namorada, as comidas que você gostava… ali estão as melhores e as piores lembranças. Ali está toda a sua vida, então você não pode olhar para o seu país com raiva, muito pelo contrário: tem que crescer em você o amor pela tua terra“.
Fundou então o jornal “Chile en Evidencia“, nome escolhido para representar a dedicação do novo periódico ao país andino e ao universo que o envolve. Seus dois lemas, “Chile es nuestra causa” e “Nada separa Chile de sus hijos“, serviam para deixar claro o objetivo de construir e manter um espaço de vinculo afetivo dos migrantes chilenos no Brasil com sua terra de origem. A publicação foi feita sempre de forma voluntária, desvinculada do Estado chileno, e as edições disponibilizadas gratuitamente para a colônia e demais interessados.

O periódico, antes da pandemia, era distribuído na cidade de São Paulo em lugares de grande circulação da colônia chilena: Eduardo e o amigo Miguel Condori, também do Chile, deixavam exemplares no consulado, em restaurantes e padarias de chilenos, na rodoviária, em agências de turismo e na Igreja Nossa Senhora da Paz, conhecida como Pastoral dos Migrantes. Na igreja, acontecia algo interessante: o jornal era retirado também por migrantes de outras nacionalidades da América do Sul, como bolivianos, peruanos, argentinos e uruguaios, e o Chile en Evidencia serviu de inspiração para que novas publicações diaspóricas surgissem: “O que me deu muita alegria foi que durante um tempo um grupo de bolivianos fez um jornal inspirado no nosso. Me perguntaram como eu fazia, como funcionava, e eles mesmos começaram a fazer um pequeno periódico. O mesmo com os peruanos”. Para pessoas do interior do estado e de outras regiões do Brasil, a publicação era enviada por correio. E chegava até para chilenos em outros países: muitos migrantes no Brasil enviavam o jornal para familiares em locais como Itália, Austrália e Estados Unidos. Totalmente financiado por anúncios, o Chile en Evidencia era mensal e chegou a ter 8 páginas com 8 mil exemplares físicos por edição. Com a popularização da internet e a consequente perda de patrocínios, o jornal passou a ser trimensal, ter menos exemplares impressos e a ser distribuído também na internet. A pandemia e a falência de diversas empresas parceiras do projeto fez com que o periódico passasse a ter 4 páginas e a ser difundido exclusivamente no ambiente digital.
Desde a primeira edição, de 1995, o jornal se esforça para publicar conteúdos sobre a história oficial do país, notícias voltadas à comunidade chilena no Brasil, divulgações de festas e confraternizações, histórias de vida de migrantes radicados em território brasileiro e iniciativas comerciais geridas por essas pessoas. Uma coluna de destaque é a “Histórias de Chile: Efemérides“, onde são listados momentos e datas marcantes para o país. Também é uma marca o apoio aos grupos folclóricos e culturais, com a divulgação e cobertura de eventos, apresentações e celebrações como a Fiesta de la Vírgen del Carmen e o 18 Chico, que comemora as Fiestas Pátrias, o maior feriado nacional do Chile celebrado em 18 de setembro. Estas festividades possuem um valor inestimável para a comunidade: além da divulgação da cultura e identidade chilenas, são formas de sustento para os migrantes que trabalham vendendo comidas típicas e artigos nacionais chilenos. Antes da pandemia, essas celebrações chegavam a reunir em São Paulo entre 2 mil e 3 mil pessoas, na Igreja Nossa Senhora da Paz e em outros espaços grandes.

Outra seção importante é a de culinária. O jornal publica receitas de comidas típicas, como as empanadas e as sopaipillas, como uma maneira de incentivar os migrantes sem trabalho a encontrar uma nova forma de sustento. Iniciativas comerciais de chilenos, ligadas principalmente à gastronomia, mas também ao artesanato e a demais produtos típicos, também são anunciadas de forma gratuita. Mais uma função social relevante exercida pela publicação é a de notícias relacionadas à colônia chilena no Brasil, com a divulgação de informações sobre legislação migratória, informes e eventos da embaixada e consulado do Chile e processos eleitorais. Sobre este assunto, o Chile en Evidencia teve papel importante junto a grupos de chilenos espalhados pelo mundo na demanda dos nacionais expatriados para que pudessem votar nas eleições presidenciais e nos plebiscitos gerais – direito este conquistado em 2017.

Mas é o trabalho de manutenção de identidade e construção da memória a atuação mais marcante do jornal. Regina Abreu (2016) lembra que a alteridade é um elemento fundamental para a construção da memória, que surge justamente na relação com o diferente. Eduardo, um chileno de 75 anos que migrou para o Brasil em 1976, observa que o longo período vivido no exterior serviu para aumentar o amor pela terra natal e o desejo de construir um senso de comunidade e manter vivas as raízes chilenas.

O jornal é assim um interessante exemplo de como a memória pode ser um convite para a produção de algo novo, fazendo uso do “universo das potências criativas” para navegar em “direções antes não deslumbradas” (ABREU, 2016, p. 49). A reflexão e a imaginação, características das diversas formas de lembrar, podem, de forma sensível, destacar novas formas temporais distintas da rapidez extrema valorizada pela modernidade: “… las personas de más edad, ya no se saludan casi formalmente como antiguamente, ahora, tanto hombres como mujeres, se saludan con cariñosos y sinceros abrazos… ahora había calor humano, amor de familias, que no siendo familias de sangre, ya son familias de corazón”. (CHILE EN EVIDENCIA, 2015, ed. 198, p. 1). A memória, como atividade dinâmica e plural, pode também refletir sobre a incerteza do tempo para pensar a nossa relação com ele: “Pensé, nos iremos a ver el próximo año? Cada año somos menos los de la tercera edad… ¿Quién faltará a la próxima fiesta? (CHILE EN EVIDENCIA, 2015, ed. 198, p. 1). O interesse fundamental da publicação, assim, é celebrar a vida migrante e “não deixar que as pessoas esqueçam de seu país”, conta Eduardo.
Para anunciar e/ou receber as edições do jornal por email, escrever para: laloaraucano@gmail.com
1 De acordo com dados do Sincre (Sistema Nacional de Cadastramento de Registro de Estrangeiros) e do Sismigra (Sistema de Registro Nacional Migratório), o número de migrantes chilenos registrados no Brasil é de cerca de 19 mil pessoas. Eduardo estima que o número total, entre registrados e não documentados, fica entre 30 e 35 mil indivíduos.
Referências:
ABREU, Regina. Memória social: itinerários poéticos-conceituais. Revista de estudos interdisciplinares em memória social. Rio de Janeiro: Morpheus, v.9, n. 15, 2016.
GRACIAS a Diós ahora ya somos una gran família. CHILE EN EVIDENCIA, São Paulo, 15 de maio a 31 de julho de 2015.

E necessario destacar com énfasis.que o boletim chile en evidencia.e um servicio gratuito e voluntario..sem finalidades de lucro..
Com certeza, Eduardo. Esse trabalho gratuito e voluntário é fundamental para a comunidade chilena e todos os interessados no Chile.