Mudar para um local de cultura distinta representa uma ruptura expressa desse quadro de referência, de sentido e pertencimento. A mudança de país impõe ao migrante múltiplas perdas, já que deixa para trás familiares, amigos, trabalho, ambiente físico, língua, normas sociais, locais conhecidos e memória social. Somado a isso, tem de ajustar-se a um novo local, aprender novos códigos sociais, pois sua forma de agir não mais corresponde ao entorno. O que antes era parte da rotina torna-se um desafio diário. (Dantas, 2015, pp. 77).
A migração, segundo o dicionário online, é a movimentação de entrada (imigração) ou saída (emigração) de indivíduo ou grupo de indivíduos em busca de melhores condições de vida. Essa movimentação pode ser entre países diferentes ou dentro de um mesmo país. Já ecologia é o deslocamento periódico de espécies de animais de uma região para outra, associado a mudanças cíclicas de características ambientais.
A imigração é, portanto, a “entrada de indivíduo ou grupo de indivíduos estrangeiros em determinado país, para trabalhar e/ou para fixar residência, permanentemente ou não”. Ainda de acordo com o dicionário, por analogia, a imigração é o estabelecimento de indivíduo ou grupo de indivíduos em cidade, estado ou região de seu próprio país, que não a sua de origem. Para Sayad, “um imigrante é essencialmente uma força de trabalho, e uma força de trabalho provisória, temporária, em trânsito” (Sayad, 1998, p. 54).
A migração africana “forçada” para o Brasil não data de hoje, mas a migração livre dos estudantes de países africanos para o Brasil é recente. A criação do Programa de Estudantes-Convênio de Graduação (PEC G), em 1965; do Programa de Estudantes Convênio de Pós Graduação (PEC PG); assim como da Universidade de Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), situada na cidade de Redenção (Ceará), marcada pela instituição da Comissão de Implementação, em 2008, apresentou-se como um índice de livre aproximação efetiva entre o Brasil e os países do Sul, principalmente os do continente africano. Mas, ao chegar no Brasil, a maioria dos estudantes africanos enfrenta diversas situações constrangedoras como choques culturais, preconceitos, racismo, xenofobia e algumas situações relacionadas aos seus países de origem.

Este presente trabalho, além de ser um tema que venho pesquisando, pretende evidenciar algumas dessas situações que nós enfrentamos cotidianamente no estado do Ceará. Para tanto, entrevistei sete estudantes do continente africano, oriundos de sete países: Angola, Benin, Cabo Verde, Congo, Gabão, Guiné Bissau e São Tomé e Príncipe. Todos eles estudam em Fortaleza ou Redenção.
Após descobrir que nós, estudantes de países africanos, costumamos passar por situações muito parecidas e decidir produzir este trabalho relatando as nossas vivências no Brasil, muitos estudantes tiveram receio de se abrir para falar sobre os casos de racismo e xenofobia que enfrentam. A única maneira de deixá-los à vontade para falar sobre o assunto foi garantindo que eles não teriam seus nomes verdadeiros expostos se assim desejassem. Por isso, todos os nomes de estudantes utilizados neste trabalho são fictícios. Criei os nomes baseando-me nos nomes comuns em cada um desses sete países. Apesar de os nomes dos entrevistados serem fictícios, os relatos são reais.
Expectativa e Realidade
Em busca de novas experiências, muitos jovens de nações africanas migram para países ocidentais depois do ensino médio completo ou da graduação. Alguns — principalmente de países de língua portuguesa, a exemplo de Guiné Bissau, Cabo Verde, Moçambique, Angola e São Tomé e Príncipe — escolhem Portugal ou Brasil. Contudo, alguns francófonos e anglófonos também vão para esses dois países para estudar. Ao chegarem, a visão que tinham acerca desses lugares tende a mudar.
Para Sayad, imigrar não é apenas se deslocar de um local para outro. “Emigrar e imigrar com sua história (sendo a imigração mesma parte integrante dessa história), com suas tradições, suas maneiras de viver, de sentir, de atuar, de pensar, com sua língua, sua religião, assim como todas as demais estruturas sociais, políticas e mentais de sua sociedade, não sendo as primeiras mais que a incorporação das segundas, em suma, com sua cultura. (Sayad, 2010, p. 22)
Antes de chegar ao Brasil, muitos de nós esperávamos encontrar uma pátria-irmã e, ao menos, ser bem- recebidos pelos 46,8% dos brasileiros que se declaram como pardos e pelos 9,4% que se percebem como pretos, segundo pesquisa de 2019 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). “Muita praia, só pessoas brancas, loiras com olhos azuis”. É assim que a estudante cabo verdiana Amanda1 enxergava o Brasil, através das telenovelas brasileiras passadas no seu país. Como ela sempre quis estudar fora, depois do ensino médio completo, a jovem foi para a embaixada brasileira do seu país procurar uma oportunidade que a levasse a cursar a faculdade de arquitetura, o que ela sempre quis e que, segundo ela, tinha problemas estruturais no seu país.
Nessa procura por uma oportunidade de realizar seu desejo, a estudante descobriu o Programa de Estudantes-Convênio de Graduação (PEC- G) e logo se inscreveu. Depois de um longo processo de seleção de “muitos meses” e de passar em um processo seletivo em Brasília, a estudante, que na época tinha 18 anos, se despediu de sua família, de seus amigos e de seu país para embarcar num voo direto para Fortaleza no dia 07 de março de 2013 com alguns amigos.
Mas o choque e a quebra de expectativas não acabaram nesse momento da chegada. Após se acomodar em um apartamento com os amigos com quem veio, ela passou a ir para a faculdade e a conhecer melhor a cidade. Foi na Universidade Federal do Ceará que Amanda teve seu primeiro contato com os brasileiros.
Além de ser a única negra da sua sala, era também a única estrangeira. Nos momentos de escolha dos grupos dos trabalhos, Amanda sempre ficava de fora. Ela afirma que a maioria dos alunos já tinha seus grupos definidos: “eu não tinha espaço nesses grupos e até hoje não tenho. Eu me sinto isolada na faculdade”.
Permeada por expectativa e frustração, essa é a experiência que muitos sujeitos diaspóricos vivem ao deixar sua terra natal em direção a países com os quais se identificam em alguns aspectos, seja pelo idioma, seja pela formação histórica, seja pela questão racial.
Por uma perspectiva decolonial, diversos intelectuais diaspóricos buscaram compreender os impactos na vida desses migrantes em termos psíquicos, de representação e de identidade culturais. É o caso do sociólogo Stuart Hall, que deixou a Jamaica em direção ao Reino Unido e ali foi conduzido, por meio de representações sobre o negro, a uma a uma “identidade caribenha”. Ou o caso do teórico Homi Bhabha, que migrou da Índia para a Inglaterra e ali conseguiu compreender a relação irônica que o indiano estabelece com o discurso colonial produzido pelos ingleses na Índia, sua ex-colônia.
África vista por alguns brasileiros
Quantas vezes alguns de meus colegas da USP me perguntaram quantos leões eu já havia caçado na minha vida e quantos instrumentos musicais eu tocava, como para dizer que todos os africanos convivem com os animais todos os dias e todos têm musicalidade no sangue para tocar vários instrumentos musicais tradicionais… E, quando eu respondia que nunca cacei um leão porque não era caçador, que não tocava nenhum instrumento musical porque não sou músico, eles ficavam de boca aberta e não entendiam como eu poderia ser uma exceção. Kabengele Munanga, antropólogo congolês naturalizado brasileiro, professor da Universidade de São Paulo (USP)
Os brasileiros costumam se referir ao continente africano como sendo um único país. Por meio de referências genéricas e frequentemente preconceituosas, o mundo ocidental produziu uma imagem homogeneizante sobre o povo africano. Apesar das proximidades históricas, culturais e geográficas, diversos aspectos definem, de modo muito peculiar, os 54 países independentes que formam o terceiro maior continente em território e o segundo maior em população. Essas são as Áfricas, no plural.
A falta de informação dos brasileiros a respeito do continente africano foi um dos aspectos que mais me chocou. A lista de perguntas constrangedoras é vasta: “Lá tem mar? Tem clubes, tem campeonato? Como vocês vivem lá? Como chegou ao Brasil? De moto? Lá tem carros? Tem avião? Veio pra cá pra trabalhar? Aqui é melhor, né? Tem água potável?”. Essas são algumas das perguntas que, diariamente, brasileiros nos fazem sobre nosso continente de origem, a África; quase sempre compreendido como um lugar indivisível, homogêneo. Quase todos os estudantes de países africanos que entrevistei relataram ouvir perguntas constrangedoras da maioria dos brasileiros quando informam de onde vieram.
Deixamos pessoas que amamos, bem como nossas culturas, costumes e tradições, para estudar e, assim, acabamos por conhecer outras pessoas e nos adaptarmos a novos costumes. O emigrado, de acordo com Sayad, é o homem de dois lugares, de dois países, tem que pôr um pouco aqui e um pouco ali […] seu corpo está aqui, sua cabeça está aqui – e não pode ser de outra maneira já que seu suor está aqui – mas todo o resto, seu espírito, seu coração, seu olhar está ali. […] Esta é a situação da emigração: um aperto[uma situação opressiva para eles]. (Sayad, 2010, pp. 96-97)
Muitos de nós entram nessa aventura sem sequer entender uma frase da língua do país com que tanto sonhamos e que é constantemente idealizada pelos meios de comunicação de nossos países de origem. Mas, uma vez no Brasil, enfrentamos e aturamos situações inimagináveis. Nunca pensei que alguém me perguntaria se, “na África”, eu “dormia nas árvores, junto com os animais”.
Para muitos de nós, é triste e revoltante a maneira como parte considerável dos brasileiros costuma imaginar o continente africano. São olhares que muitas vezes se limitam aos problemas socioeconômicos destacados pela mídia ocidental de modo estereotipado. Claro, os problemas existem, mas eles não dizem tudo sobre nós.
“Como diz Nelson Mandela, nenhuma criança no mundo nasce odiando outras crianças por causa das diferenças de cor da pele, os fazem porque elas educadas pelos adultos de suas sociedades para não valorizar outras culturas, a diversidade e as diferenças que constituem a riqueza coletiva da humanidade”. Essa é a avaliação do antropólogo congolês Kabengele Munanga, professor da Universidade de São Paulo (USP).
Naturalizado brasileiro, Munanga considera que os imaginários negativos dos brasileiros sobre a África “são exibidos pela imprensa escrita e falada, pelos livros didáticos e pela educação em geral”. Para o pesquisador, a África seria vista no Brasil de modo positivo “se, desde a infância, através da educação e da socialização, os brasileiros tivessem acesso às imagens positivas da África no plano histórico, cultural, religioso, da ciência e da tecnologia, da filosofia e visão do mundo e do cosmos”. Ao contrário disso, os produtos culturais brasileiros “só mostram a fauna, a flora, as guerras, as pobrezas, doenças, sofrimentos, atrasos e nada mais, como se a África fosse só isso”, critica.
Munanga destaca a curiosa relação que o Brasil estabeleceu com o tráfico negreiro e com a população negra que se firmou no país a partir do processo escravagista. Apesar de ser tão colônia quanto outros territórios igualmente coloniais, o Brasil estabeleceu uma relação simbólica de poder em que ele seria uma suposta metrópole receptora de mão de obra escrava. Esse fenômeno ajuda a explicar o imaginário brasileiro sobre o continente africano.
1 Os nomes dos entrevistados utilizado neste texto são fictícios
