Joel Georges Elias Mansour e Júlia Duna Mansour, ambos de famílias sírias, conheceram-se no antigo clube Sírio Libanês, em uma terça-feira de carnaval. O casal trabalha junto em uma loja de tecidos na rua Senhor dos Passos, no centro do Rio de Janeiro. Na última semana, eles contaram ao oestrangeiro.org algumas de suas memórias vividas neste espaço da cidade, conhecido como a Sociedade dos Amigos das Adjacências da Rua da Alfândega (SAARA).

Joel e Júlia. Imagem: Daniela Nigri

A família de Joel chegou ao Rio de Janeiro há cerca de 85 anos, vinda da cidade de Saidnaya, na Síria. Eles saíram pelo Líbano, porque lá existia uma rota mais fácil que passava pela França antes de chegar ao Brasil. Joel se recorda de Saidnaya a partir de um cartão postal que recebeu há muitos anos, e diz que “a cidade era toda de pedra, as casas não tinham telhado, era tudo na laje. Eles plantavam, viviam de verdura, e isso salvou eles um bocado”.

A cidade de Saidnaya. Imagem: Acervo pessoal

Joel conta que a sua mãe não trouxe roupa para ficar mais do que três meses no Brasil, mas ela acabou ficando. Segundo ele, “os sírios que chegavam, ficavam no centro, mas volta e meia se espalhavam. Uns saíam para Marechal Hermes, outros para o Méier, outros para Botafogo. O pai da Júlia, por exemplo, foi para o Engenho Novo”. Entretanto, ele reforça que houve uma época em que os grupos se concentravam mais no centro, onde haviam os atacadistas. “Todos os atacadistas ficavam no centro, indo lá para a Gamboa, e para aquela zona do Saara”. 

Já havia alguns familiares na cidade antes dos pais de Joel aportarem na Praça Mauá. Seu pai chegou com o objetivo de ajudar um cunhado já estabelecido, mas isso acabou não dando certo. Até então, ele não tinha muitos conhecimentos de trabalho, pois no período da dominação francesa na Síria, ele atuava como militar. “Isso foi um dos motivos para ele querer sair. Meu pai tinha horror de um comandante de lá, parece que eles apertavam muito. Naquela época da guerra, eles invadiram as terras árabes, metade era da Inglaterra e metade era da França. Os dois achavam que eram os donos do mundo”. 

Então, já no Rio de Janeiro, tanto o pai de Joel quanto o de Júlia trabalharam um certo período enquanto mascates. Ela recorda que seu pai “pegava o ônibus e ia para o Méier com aquilo tudo, e ia vendendo devagarzinho”

O pai de Júlia, trabalhando como mascate. Imagem: acervo pessoal

Foi em um dos sobrados do Saara que Joel nasceu, em 1942. Ele conta que neste  momento, “o exército usava o blackout. Não podia usar a luz acesa porque estávamos em época de guerra. Então, no meu parto veio um policial, um militar daqueles da Praça da República, e foi até a rua Senhor dos Passos, onde parece que eu nasci. Aí teve que apagar a luz e foi a maior confusão”. A partir de então, a família morou no centro durante algum tempo. 

“Aquelas ruas compridas, paralelas à Presidente Vargas, a rua da Alfândega, a rua Buenos Aires, a rua Senhor dos Passos, eram habitadas por famílias que vieram, se instalaram, e alugaram os sobrados. Então tinha alguém embaixo, na loja, e as famílias moravam na parte de cima. Todos os sobrados tinham portas de madeira, porque não existiam as portas de aço. No primeiro sobrado que moramos, era um quarto com todo mundo dentro, e um banheiro no final do corredor, para compartilhar com os moradores dos outros quartos alugados. Era uma dificuldade, porque veio uma enxurrada de gente nessa ocasião da guerra, e não tinha moradia… mas as famílias ficavam ali e se davam muito”, conta Joel.

Ao se lembrar da vizinhança, ele conta que havia “muita coisa interessante. Por exemplo, na Praça da República, que contorna o Campo de Santana, existe a Igreja de São Jorge, que a gente frequentava. E do lado de cá, tinha uma família que morava ali, e tinha uma mulher síria que era chamada de Maria Turca. Ela simplesmente era a representante da companhia Fiat Lux. Sabe? Aquela caixa de fósforo. Então, o Brasil inteiro tinha que comprar com ela, nessa esquina em frente a Igreja de São Jorge”. 

Joel Mansour. Imagem: Daniela Nigri

Na época de sua infância, o lugar das brincadeiras era o Campo de Santana. “Era um parque muito bonito, com lagos, tinha cisne, preguiça. A gente parava e ficava olhando a preguiça, ela levava horas para subir cinco metros. Tinha a cotia, e a gente ficava correndo atrás da cotia. Tinha a galinha angola, que é toda pintadinha, branca e preta com vermelho. Tinha o pavão em todas as ruelas, que se exibia, abrindo aquilo tudo. Eu não sei como as pessoas não visitam mais ali”. 

Com relação à língua, ele conta que era a maior dificuldade. “Cada um falava na sua língua. Algumas pessoas falam hoje assim pra mim: mas você não fala o árabe? Como não fala? Eu respondo: não, você não sabe. Naquela época, quando nós éramos crianças, as pessoas debochavam na rua. A gente saía com meu pai e a família toda. Éramos cinco irmãos. E era uma confusão danada porque eles ficavam debochando, dizendo: rala, rala (yalla, yalla). A gente tinha que sair correndo. E isso demorou, levou um tempo. Eu sei que eles debochavam e sofríamos com isso”. No entanto, ele observa que anos depois “o pessoal mais antigo, já com 70, 80 anos, eles continuavam arranhando… eles queriam preservar a língua”.

No que se refere aos prédios do Saara, Joel observa a beleza da arquitetura, mas também recorda um episódio que passou por lá. “Nós moramos também na rua Senhor dos Passos 266. Tinha uma sacada que nos salvou um dia que pegou fogo. Como o sobrado era todo de madeira, era fácil pegar fogo. A minha mãe colocou os cinco filhos na sacada, então, ela correu para cima, colocou as colchas e cobertores em cima da gente. Alguém já tinha chamado o bombeiro, que é do outro lado do Campo de Santana. E nós escapamos, saímos pela escada do bombeiro, pela sacada”. Então, ele continua a história ao observar que “até hoje tem esse sobrado lá, e eu passo por lá e ainda tem algumas famílias por perto. Ainda tem duas famílias daquela época que moram por lá… as outras saíram”. 

Retrato do pai de Joel. Imagem: acervo pessoal

Joel mantém amizade com pessoas que são daquela época. Ele lembra da convivência na região, e alguns costumes chamam a sua atenção. Como exemplo, ele conta que “chegado o dia 31, tinha um negócio de praxe lá, e eu não sei o motivo, mas todas as famílias quebravam as louças, jogavam das sacadas, porque os sobrados todos tinham sacada. Isso veio de algum país”.

Já o carnaval do centro era famoso na cidade, e Joel conta que “na segunda-feira era o desfile de carros alegóricos, e os blocos andavam desde a candelária até a Praça Onze. Lembro das fantasias, dos carros alegóricos, eram bonitos. A gente ficava naquela calçada, ali do meio, e os carros alegóricos passando”. Ele conta que a sua família também chegou a morar na antiga Praça Onze de Junho, totalmente demolida na década de 1940 para construção da Av. Presidente Vargas. Nesta ocasião, “criticavam o governo, porque ele fez aquela coisa muito grande, muito larga… as avenidas. E aquelas ruas ali de dentro… nossa família morou em uma. Senador Euzébio era o nome da rua. Foi totalmente demolida. Era na Praça Onze, uma horizontal. Hoje no lugar dela tem jardinzinho com um canteiro no meio”. 

A convivência entre árabes e judeus era boa na região, principalmente no território da Saara. Joel diz que “aquele pessoal, que já passava da meia idade, às vezes discutia pelas esquinas. Mas mesmo com essas guerras últimas de 30 anos para cá, não tinha muito atrito”. Sobre esse assunto, ele acrescenta ainda que “eu não acho legal quando escuto alguém falar: ‘imagina se juntar árabes e judeus’. Eu digo: está cheio, tem centenas, milhares… meu deus do céu. Tem gente que é libanês e judeu. E qual o problema?” 

Por fim, Joel se sente saudoso sobre o passado, e diz: “agora saio para dar uma rodada e não encontro muita mais gente não. A situação apertou um pouco, o Saara foi reduzido. Eu queria que aquele conjunto todo voltasse no tempo. Porque não mudou para melhor, mudou para pior. Os prédios não tem uma boa manutenção”. Ele complementa e diz que “hoje mesmo, andei lá na rua do Rosário, na Uruguaiana. Aqueles prédios, na Visconde do Rio Branco, na Tomé de Souza, estão completamente jogados. Como é que deixaram isso acontecer?”.