Ao estudar as subjetividades presentes no processo de vinculação dos imigrantes-refugiados na cidade do Rio de Janeiro, parte da minha atenção recai sobre a questão do conflito. Meu interesse no tema já ficou evidente no último texto que publiquei aqui, intitulado “Carta aberta da cidade do Rio de Janeiro ao imigrante-refugiado”.
Chamo a atenção para o fato que o conflito é um fato recorrente, rotineiro (e já esperado) no processo de vinculação deste grupo de pessoas na cidade. Ele se expressa nas mais variadas formas e pode ser observado e experienciado sob os mais diversos signos. Apesar de normalmente ser percebido pelo seu viés negativo, trago, neste texto, uma perspectiva diferente. Proponho um olhar positivo para esta forma de sociabilidade.
Mais do que intercultural, a cidade do Rio de Janeiro é transcultural, o que torna mais complexo e menos linear as dinâmicas interacionais entre os imigrantes-refugiados e a sociedade carioca. Logo, para se ter o “olhar positivo” que proponho, é necessário se dispor a interpretar de outra forma os códigos materiais e simbólicos presentes nestas interações.
E por que digo que o conflito é natural e até mesmo esperado no processo de vinculação destas pessoas, na cidade? Porque nas interações presentes há as mais diversas motivações e interesses, que se imbricam e atravessam formando uma trama. Como diz Simmel, um sociólogo alemão nascido no século XIX, “os indivíduos estão ligados uns aos outros pela influência mútua que exercem entre si e pela determinação recíproca que exercem uns sobre os outros”. Para além da sua perspectiva negativa, o conflito pode ser administrado, minimizado ou até mesmo dirimido, por meio da negociação. Não podemos esquecer que a todo momento, dia após dia, os imigrantes-refugiados se vinculam negociando continuamente espaços físicos e simbólicos na cidade. Esta negociação, parte constitutiva das interações, só é possível porque no momento do conflito, emergem o singular e o desigual, o que evidencia a inexistência da indiferença. Neste sentido, na busca por uma resolução, o conflito pode ser considerado um fato socialmente construtivo.
É possível identificar quatro vieses positivos para o conflito, que como já sabemos, está naturalmente presente nas interações entre os imigrantes-refugiados e os cariocas: (a) ele impõe uma situação além do instituído, ou seja, busca uma resolução (ou unidade), que por sua vez gera novos arranjos interacionais. Isso por si só possui a potência de modificar as estruturas sociais vigentes, colocando-as sob novas condições; (b) cria um novo espaço, onde os imigrantes-refugiados podem se fazer ver e ouvir. É nesse espaço que distâncias, limites e desigualdades podem ser superados; (c) o surgimento das novas e híbridas identidades dos imigrantes-refugiados presentes na cidade só é possível a partir das interações com seus moradores e do contato com novas (e muitas vezes contraditórias) práticas culturais e (d) as identidades dos moradores da cidade são também ressignificadas a partir do contato com esse “outro”, que tanto tem a nos ensinar.
Diante do exposto, é possível perceber que, independentemente da usual perspectiva negativa do conflito, ele pode assumir um papel positivo no processo de vinculação dos refugiados que fixaram residência na cidade do Rio de Janeiro. Esta possibilidade existe uma vez que por meio dele é possível desencadear mudanças e transformações sociais ou, no mínimo, manter antigas estruturas sob novas condições. A presença de imigrantes-refugiados na cidade nos permite organizar novas possibilidades existenciais, onde a partir das novas e híbridas identidades é possível sonhar com novas formas de vida e afetos.
Referências:
CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas Híbridas. São Paulo: EDUSP, 2015.
HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
SIMMEL, Georg. Questões Fundamentais da Sociologia: indivíduo e sociedade: Zahar, 2006.
Endereço eletrônico:70 anos da Convenção relativa ao estatuto dos Refugiados – 1951-2021). Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/wp-content/uploads/2021/12/70-anos-projeto-WEB.pdf. Acesso em 19/10/2022.
