O site oestrangeiro.org inaugura uma de suas seções sobre as pesquisas que analisam o fenômeno migratório no Brasil. Dando ênfase àquelas produzidas no ‘berço’ do grupo Diaspotics, realizador deste site, iniciamos com o texto de Guilherme Curi, que concluiu sua pesquisa de doutorado neste ano. Curi é membro do Diaspotics, jornalista pela Universidade Católica de Pelotas, mestre em Sociologia pela University College Dublin e, agora, doutor em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. A orientação foi do Dr. Mohammed ElHajji.

Leia o texto de Curi e conheça mais sobre a tese “O Mahjar é Aqui: A comunicação contra-hegemônica dos intelectuais árabe-brasileiros”:
A pesquisa realizou um estudo sobre a construção da identidade árabe-brasileira ao longo dos dois últimos séculos, cujo foco de análise dirigiu-se à trajetória da comunidade sírio-libanesa no Brasil, suas formas de representação e, principalmente, auto-representação. A atenção especial foi voltada para aquilo chamado de comunicação intelectual contra-hegemônica desses imigrantes no mahjar, que na língua árabe significa estado de migração, exílio. No entanto, esta definição não seria estática pois, a medida que esses imigrantes decidem permanecer no Brasil, a própria concepção de mahjar se modifica, é reinventada, ressignificada.
Ao atentar para trajetória da literatura árabe e para o Renascimento Árabe moderno – al–Nahda – observou-se com surpresa e fascínio que seus momentos mais decisivos na diáspora desdobram-se na América Latina, especialmente no Brasil da primeira metade do século XX. Um dos principais grupos no país que integrou esse movimento foi a Liga Andaluza de Letras Árabes, composta por escritores e poetas sírio-libaneses, com intensa produção entre as décadas de 1930 e 1950.
Ao aportarem nas novas terras, os árabes depararam-se com um universo cultural no qual já circulavam algumas representações sobre eles e qual seria o lugar possível na sociedade brasileira, repleto de estereótipos e estigmas que se modificaram ao longo dos anos. Foi através da mídia impressa e da literatura que esses imigrantes encontraram um meio de desconstruir essas imagens estigmatizadas, ainda presentes.
A diáspora árabe moderna para as Américas teve sua primeira grande leva migratória iniciada no final do século XIX. Em maior parte esse movimento era composto por imigrantes sírio-libaneses, cristãos, da região do Levante – na época, também chamada de Grande Síria, onde, hoje, estão localizados Síria, Líbano, Jordânia, Palestina e Israel -, que viviam sob o governo do Império Otomano.
O florescimento da cultura árabe no Brasil e o hífen identitário
Esses primeiros intelectuais árabe-brasileiros concebiam e imaginavam o Brasil como uma Nova Andaluzia. Explicando: Em VII e XIV d.C., a parte da Península Ibérica onde também está Portugal – em árabe chamada Al Andaluz – viveu sob domínio árabe. Esse longo período é marcado por uma narrativa central que enaltece a vasta prosperidade social, econômica e artística árabe. Além disso, é celebrado a convivência pacífica entre as diferentes culturas e sociedades que eram definidas, em grande parte, por suas orientações religiosas – muçulmanas, cristãs e judaicas. O período Andaluz é, portanto, considerado a época de ouro da arte e da literatura árabe, quando a língua e a poesia árabes experimentaram forte mutação e florescimento.
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A escolha pela a hifenização sírio-libanesa, que transcorre todo o trabalho, é proposital e consciente por tratarmos de etnicidades diferentes, mas que possuem uma trajetória migratória comum, principalmente nos primeiros anos. No final do século XIX, momento de chegada desses imigrantes, ainda não havia a distinção entre as nacionalidades sírio e libanesa pois ambos os países passam a existir como estados-nações somente em meados de 1940. Já o árabe-brasileiro se dá justamente na busca da pesquisa em trazer à luz a relação, por vezes conflituosa, entre etnicidade, identidade e integração social. O hífen simboliza o encontro, a não fronteira.
A tese em partes
A tese, que será publicada brevemente, está divida em cinco capítulos que dialogam entre si. No primeiro, de cunho teórico, discute-se a posição da cultura nas sociedades contemporâneas e fornece os preceitos basilares para a compreensão da formação das identidades árabes na diáspora e a consequente produção contra-hegemônica discursiva de seus intelectuais.
Já o segundo capítulo é dedicado às questões sócio-históricas que contribuíram para a construção da narrativa das identidades árabes contemporâneas, com especial atenção para trajetória cultural, social e política da Síria e do Líbano.
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Em seguida, no terceiro capítulo, o objetivo é discutir o papel da representação a partir da ótica dos Estudos Culturais, da crítica imperialista – principalmente através de Edward Said – e pós-colonial. Além disso, questiona-se a função do estereótipo nas sociedades atuais, tendo como o foco, obviamente, os estereótipos lançados sobre a cultura árabe hoje. Neste capítulo, também é apresentado um breve debate teórico sobre as questões referentes às identidades nacionais e o posto da imaginação no mundo transnacional contemporâneo.
No quarto capítulo, é analisado toda a trajetória da diáspora árabe no Brasil. A primeira parte do texto é dedicada à diáspora sírio-libanesa no mundo moderno e contemporâneo, com o objetivo de contextualizar a imigração árabe-brasileira dentro do panorama global. Logo, analisa-se as questões que motivaram a saída desses emigrantes da Grande Síria e a consequente chegada ao Brasil. Em seguida, atenta-se para trajetória sociocultural dos primeiros imigrantes sírio-libaneses Ainda, é analisado a negociação e a representação identitárias do árabe-brasileiro. Por fim, discute-se as questões pertinentes à contemporaneidade e ao atual fluxo migratório, com especial atenção para os refugiados sírios (entrevistados ao longo da pesquisa), decorrentes dos conflitos iniciados em 2011 e que, infelizmente, acontecem até hoje.
Já no último capítulo, busca-se compreender e analisar o surgimento, expansão e atual composição da mídia sírio-libanesa no Brasil e assim traçar as linhas a partir das quais estas formas de mediações socioculturais se estruturam e foram construídas ao longo dos anos. Trata-se, em um primeiro momento, de uma análise crítica da produção de acúmulo teórico e intelectual da chamada imprensa mahjar. Busca-se, assim, compreender os fatores históricos, sociais e culturais que motivaram a construção da identidade árabe, algo construído e reproduzido de diversas formas através de diferentes meios e dispositivos até os dias de hoje. Ainda, no quinto capítulo, o debate recai sobre a produção literária da segunda geração de intelectuais árabe-brasileiros. Os principais autores estudados são: Jamil Haddad, Mussa Kuraeim, Mansour Chalitta, Emil Farhat, George Bourdoukan e Milton Hatoum. Nesse capítulo final também é descrito o resultado do estudo realizado sobre o Instituto de Cultura Árabe. Além disso, busca-se discutir e apresentar as novas perspectivas e olhares sobre a imigração árabe no Brasil a partir de expressões artísticas idealizadas pelos descendentes desses imigrantes.
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Guilherme Curi