A importância do pertencer já foi tema de poetas, estudiosos, acadêmicos, escritores, psicólogos, filósofos e geógrafos, e com certeza permeia a vida humana das mais diversas formas. Clarice Lispector, uma das maiores escritoras brasileiras do século XX e proveniente de uma família marcada pelas migrações, em sua crônica “Pertencer”¹ também ressaltava esta “fome humana” que a tomava desde o seu nascimento e que se apresenta, de fato, como um destino. Entretanto, pontua que esta mesma necessidade de pertencer não se resume simplesmente a se inscrever em um clube ou associação, mas a algo que vem de si e transforma o outro. É dar um pouco de si ao que pertence. Exige uma participação ativa.
Esta participação é fundamental para a identidade individual e coletiva; e assim primordial para os grupos migrantes. Ao estar relacionada com um território, o campo amplia-se. A identidade migrante pertence, de certa forma, tanto à terra do passado como à terra do presente e do futuro. Este mosaico temporal ganha novas perspectivas à partir da apropriação de outros ambientes que permitem que a participação, o alcance e a informação aconteçam independente de limitações geográficas.
Com o rápido crescimento da Internet, as novas percepções de espaço e comunidade, bem como a facilidade de comunicações virtuais, contribuem com os processos de reconstrução das histórias da população migrante. Ao mesmo tempo, são amplificadas as possibilidades de encontro, de troca de informações, do surgimento de organizações políticas e muitas vezes também de resistências.
Em “Webdiáspora.br – Migrações, TICs e identidades transnacionais no Brasil”, os autores Elhajji e Escudero² expõem a mudança da forma de imigrar a partir das novas tecnologias. Para além das ausências e rupturas, as atuais tecnologias de informação e comunicação possibilitam a manutenção e a consolidação de laços identitários e afetivos em tempo real, mesmo que geograficamente distantes. – incentivando a construção de novos quadros comunitários. Deste modo, os meios digitais vêm romper com a relação espaço-temporalidade das narrativas e a forma de construir memória, fazer política e se identificar com grupos e comunidades como vinha sendo apropriado e construído até então.
Como essa nova técnica e ambiência interferem no ser político e nas suas possibilidades de atuação?
As transformações institucionais são mais lentas do que as mudanças de comportamento observadas. Entretanto, os processos eleitorais em todo o planeta vêm sofrendo influência direta das redes sociais. Elhajji e Escudero, ao pontuarem a importância das TICs nas novas formas de imigração, salientam a comunicação como processo base de toda e qualquer forma de organização social. Assim, essa revolução espaço-temporal da forma de comunicação impacta diretamente o desenvolvimento político. Indivíduos com histórias, sonhos e projetos semelhantes se reconfiguram comunitariamente após o surgimento das “tecnologias de informação num período de coincidência temporal com uma necessidade de mudanças econômicas e sociais”.
Em outubro de 2022, o Brasil terá eleições gerais e o tema migratório aparece em quatro planos de governo de candidaturas à presidência. As percepções sobre o fato ainda são primárias, já que a campanha se iniciou neste mês de agosto. O que podemos pontuar até o presente momento é que as propostas apresentadas miram uma parte da população brasileira que cresceu 17,4%³ de 2018 a 2020 e que vem crescendo nos últimos dois anos.
Nas eleições de 2018, 500.727 eleitores brasileiros residentes no exterior estavam aptos a votar em 171 localidades eleitorais de 99 países. Destes, 411.123 compareceram às urnas. Atualmente, de acordo com o TSE, 553.446 pessoas⁴ podem votar fora do Brasil, mas estes dados não contemplam os emigrantes brasileiros que se cadastraram após maio de 2020. O número atual provavelmente é significativamente maior. Desta forma, um número cada vez mais destacado de brasileiros, mesmo longe da pátria, participam efetivamente da escolha do presidente; e a campanha eleitoral pode ser vivida conjuntamente e online.
Assim, a comunidade brasileira configura-se para além de seu país de origem. O contexto digital atual, com a facilitação da troca de informações, pode promover um espaço de cidadania e a existência de uma desterritorialidade identitária. As comunidades virtuais permitem não só a comunidade entendida como horizonte utópico inspirador de transformações sociais, mas também como espaço de lutas para além do espaço geográfico existente. A questão migratória deve ser acolhida em projetos de governo mais abrangentes e efetivos.
¹ LISPECTOR, C. , A descoberta do mundo, Ed. Rocco, RJ, 1999. SAFRA, G.
² ELHAJJI, Mohammed, ESCUDERO, Camila. Webdiáspora.br: migrações, TICs e identidades transnacionais no Brasil – (recurso eletrônico)- Porto Alegre, RS, Editora Fi, 2020.
³ Fonte:
Imagem de capa: Getty Images
