Neste domingo (9), o Papa Francisco canonizou o irmão salesiano Artêmides Zatti (1880-1951) e o bispo João Batista Scalabrini (1839-1905) em uma missa para 30 mil pessoas. Ambos nasceram na Itália e se destacaram pela prática apostólica voltada a grupos que recebem atenção do líder religioso: os doentes e os migrantes.
O sobrenome de João Batista é conhecido no Brasil, sobretudo por migrantes que buscam os serviços pastorais para buscar regularização documental, trabalho e assistência social. Em boa parte das dioceses em que está presente, a Pastoral do Migrante é regida pelo carisma scalabriniano, acolhendo indivíduos e famílias sem distinção de credo ou origem.
Em tempos em que a religião tem sido questionada por interferir gradativamente na laicidade do Estado, a Pastoral do Migrante anda afastadamente da confusão atual. Este e os demais serviços pastorais encampados pelos missionários de Scalabrini não só têm o aceite da sociedade civil organizada, como são parte dessa organização que nos últimos anos ajudou a construir estruturas de acolhimento e legislações nas últimas décadas, como a Nova Lei de Migração.
Só para referenciar dois dos principais exemplos dessa atuação, na cidade de São Paulo, na região do Baixo Glicério, ponto de acolhimento a migrantes transnacionais, encontra-se o Centro Scalabriniano de Estudos Migratórios (CSEM) que tem como função realizar um diagnóstico permanente do fenômeno migratório, em seus diferentes ângulos e matizes; identificar os principais desafios enfrentados pelos migrantes; e assessorar as províncias scalabrinianas, a Igreja Católica e a sociedade na busca de soluções adequadas e eficazes.
Outro exemplo é o Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH), estrategicamente localizado em Brasília e voltado para a articulação de redes e de políticas públicas, além do trabalho assistencial e de acolhimento. Em seu site, o IMDH apresenta sua missão com vistas a “promover o reconhecimento da cidadania plena de migrantes, refugiados, refugiadas e apátridas, atuando na defesa de seus direitos, na assistência jurídica e humanitária, em sua integração laboral e sociocultural, e demandando sua inclusão em políticas públicas, com especial atenção a mulheres, crianças e pessoas em situações de maior vulnerabilidade”.
Neste duplo pensar, entre a religiosidade e a vida social, o padre scalabriniano Alfredo Gonçalves aponta algumas “tensões fecundas” que são marcadas, primeiramente pelas migrações inseridas na ordem mundial, cuja tensão é exercida pelo impulso que o migrante traz para o status quo social, sendo ele o portador de uma “boa nova” (ou seja, da necessidade de transformação de ambientes de injustiça). Uma segunda tensão é exercida pelo carisma sobre a estrutura institucional católica ao encarnar as dores dos migrantes. E um terceiro ponto é referente ao binômio da casa e da tenda, sendo que a primeira representa a estrutura necessária ao bem-estar e a segunda enfatiza a mobilidade. Sem esta, “a casa converte-se em palácio ou numa fortaleza cerrada”, explica Gonçalves, traduzindo este binômio na perspectiva da paróquia e da missão assumidas por esses missionários.
A participação dos scalabrinianos na vida brasileira, dentro do escopo migratório, pode ser referenciada pela máxima do novo santo católico: “A pátria é a terra que dá o pão”. Ela acompanha o caminhar inquieto de homens e mulheres que rompem, com seu corpo, as fronteiras estabelecidas e insiste em uma cidadania universal. Esta é direito humano, mas também doutrina social a ser posta nas dinâmicas de informação, mobilidade, e das mudanças climáticas e geopolíticas refletidas pelo século XXI.

Neste sentido, a canonização do “pai dos migrantes” pelo Papa Francisco não diz respeito apenas aos fluxos de italianos que aportaram na América no século passado. Quando vivo, o bispo de Piacenza acompanhou atentamente a chegada dos primeiros religiosos de sua congregação e famílias italianas em busca de uma vida melhor. A imagem da embarcação que povoa o imaginário sobre nossa ancestralidade foi documentada, inclusive, por Jacir Braido, sacerdote que atuou em Curitiba, no italiano – e scalabriniano – bairro de Santa Felicidade (“O bairro que chegou num navio”). Hoje, um bairro italiano pelos restaurantes e haitiano e venezuelano por demografia, pela proximidade à Pastoral do Migrante incrustrada da Avenida Manoel Ribas, artéria desse bairro histórico.
Por isso, a canonização de Scalabrini não serve para a Igreja Católica apenas como a santificação de uma vida exemplar, mas atua como projeção para a prática socioeclesial que defende Francisco. Sem pretensões teológicas, pois este não é o nosso ponto no artigo, mas a defesa sistemática ao acolhimento de migrantes ao redor do globo pelo Pontífice amplifica a dignidade e a integralidade da vida no seio da maior religião do ocidente e faz ranger os dentes aqueles que insistem ser a conduta pró-vida apenas uma defesa pró-feto. Ou a terra será de todos, ou de ninguém; afinal, somos todos migrantes.
Referências:
Braido, J. O bairro que chegou num navio: Santa Felicidade – Centenário. Curitiba: Lítero-Técnica, 1978.
Gonçalves, A. Migração e dinâmicas de respostas scalabrinianas. In: Atas do Congresso Scalabriniano – Migrações e Modelos de Pastoral. Triuggio, 2005.
