Para além do ótimo IDH e da cultura pop, a ideia perfeccionista do Japão mascara as lacunas da qualidade de vida que influenciam na saúde mental

O 19º lugar no ranking de índice de desenvolvimento humano (IDH) entrega os pilares que constroem a qualidade de vida no Japão, que podem ser resumidos, segundo o próprio sistema de medição, em um bom poder de compra, uma boa educação e longevidade. Aqui do dito Ocidente, especialmente do Brasil, o país é visto como exemplo de avanço, tecnologia e perfeccionismo.

A conexão Brasil-Japão é uma via de mão dupla: nosso país concentra a maior comunidade japonesa fora do Japão, assim como a terra do sol nascente é a 5ª da lista quando o assunto é abrigar brasileiros. 

Por aqui, além das exemplificações do Japão como país modelo, também há um grande consumo de cultura popular japonesa. Mangás, animes, tokusatsus, jogos, música, entre outros: são inúmeros produtos comumente protagonizados e consumidos por – não apenas, mas em grande maioria – adolescentes. Do nosso ponto de vista, ao tomarmos esses personagens como verdade, interiorizamos estereótipos e acreditamos conhecer um povo inteiro a partir dessas referências. Contudo, a realidade de muitos adolescentes e jovens nipônicos nem sempre consiste nas personalidades representadas pela cultura pop.

Aqui no Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente considera adolescentes aqueles indivíduos entre 12 e 18 anos de idade. Já para a Organização Mundial de Saúde, a fase perdura dos 10 aos 19 anos. Entretanto, em 2018, pesquisadores australianos publicaram um artigo na revista científica “Lancet Child & Adolescent Health” apresentando uma nova proposta: a adolescência dura até os 24 anos.

Fonte: Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)

Amanda Ayabe, 27, é um exemplo para ilustrar esse novo entendimento do tempo da adolescência em solo japonês. De Itapetininga, município de São Paulo, se mudou para o Japão quando tinha apenas 13 anos, no verão de 2008. A escolha de sua família, que buscava melhores condições de vida, fez com que Amanda construísse sua adolescência no Japão, onde permanece até hoje.

“Eu fui a única que veio pra cá adolescente. Meu irmão veio pra cá com 18 anos [em 2002], minha irmã completou 18 anos e veio pra cá e eu fui a que veio com 13 anos. Eu não tive a escolha de vir. Foi ‘a gente tá indo e você vai junto’”, relata.

Amanda Ayabe | Reprodução: Instagram

Assim que chegou no país, ela ingressou numa escola japonesa, mesmo sem saber o idioma. Aos olhos dos colegas de classe, era ela a menina estrangeira que “caiu” no Japão e que eles não sabiam identificar o que ela sentia ou falava.

Após dois anos e meio na escola japonesa, Amanda foi para uma escola brasileira, onde concluiu seus estudos. A intenção dela era retornar ao Brasil para fazer faculdade. Ainda no Ensino Médio, com 16 anos, arranjou um emprego de meio período no McDonald’s perto da sua escola, onde trabalhou por um ano e meio. “Eu já tava nessa de ‘não sei o que vou fazer, mas eu preciso de dinheiro. Quero tentar outras coisas, mas como meus pais não têm a condição, eu mesma vou trabalhar’”.

Fonte: Index Mundi

Apesar da população em idade economicamente ativa representar pouco mais de 59% do povo japonês, apenas 9,6% correspondem à faixa etária entre 15 e 24 anos. Desses, segundo dados de 2020 da International Labour Organization, divulgados pela plataforma The World Bank, estima-se que 49,7% das adolescentes mulheres trabalham, enquanto 48% é o que corresponde ao gênero masculino.

Mesmo com essa relação tão antecipada com o trabalho, o olhar de Amanda sobre os adolescentes japoneses entrega que o amadurecimento deles é tardio: “Eu acho que no Brasil, por termos uma condição de vida diferente, uma realidade diária diferente, acabamos crescendo um pouco mais cedo. Eu me sentia muito mais madura que os adolescentes da escola na qual eu estudava. Nas questões como poder sair com os amigos, gostar de alguém… Enquanto a gente com 13 anos no Brasil já deu o primeiro beijo, aqui isso é uma coisa de outro mundo. E eu via muito dessa falta de maturidade nos adolescentes brasileiros que cresceram aqui também”. 

E se por um lado há a imaturidade para os assuntos da juventude, por outro, o sistema educacional exige foco e competição. São 6 anos de escola primária, 3 de ginásio e 3 de Ensino Médio, que eles chamam de “colegial”. O ingresso no Ensino Médio depende de classificação a partir de provas ou indicação por carta de recomendação. As escolas mais concorridas ainda incluem uma entrevista no processo de seleção. Nessa etapa da vida, já tem início uma pressão pela qual os adolescentes passam.

Monica Setuyo Okamoto, professora do Departamento de Letras Estrangeiras Modernas da Universidade Federal do Paraná, escreve sobre o processo de criação do atual modelo educacional do Japão em seu artigo “A Educação Ultranacionalista Japonesa no Pensamento dos Nipo-brasileiros”. Desde o final do século 18, o Japão já vinha moldando seu sistema educacional com base na educação moral.

“A manipulação deliberada da ‘cultura’ por meio da ‘educação’, com propósitos ’ultranacionalistas’ em nome da nação japonesa foi um dos maiores legados deixados pela reforma educacional Meiji [1868-1912], a qual tinha como objetivo central proteger o Japão da ameaça estrangeira”, escreve Okamoto. 

Contudo, a rigidez do ensino japonês – que ainda hoje mantém restrições aos estudantes, principalmente às meninas – não é o único fator possível para abalar a estabilidade mental dos jovens.

“Eu cheguei aqui e entrei logo de cara numa escola japonesa. Lá, eu era a única estrangeira. No segundo ano, entraram dois chineses, mas no primeiro eu era a novidade da escola. […] Mas eu tive a sorte de não ter sofrido bullying, o que é uma coisa rara”, compartilha Amanda. Mesmo depois do ensino básico, ela comenta ter aprofundado sua percepção sobre o bullying na própria faculdade – onde estudou moda –, principalmente direcionado à estética das meninas, seja corporal, facial etc.

O ijime, como é chamado o bullying no Japão, tem um longo histórico. Em outubro de 2020, a Revista Alternativa, veículo de comunicação produzido por brasileiros no Japão, divulgou que foram relatados mais de 612 mil casos de bullying nas escolas japonesas apenas no ano de 2019. Visto que os casos são comuns por lá, é comum que o próprio Ministério da Educação realize esse levantamento.

Na mesma pesquisa,  foi descoberto que 317 alunos se suicidaram, com 10 casos comprovados de bullying como motivação. Esse, inclusive, é outro ponto a jogar luz quando se coloca na balança o que constitui a boa qualidade de vida dos adolescentes japoneses.

Fonte: Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)

A estabilidade do número de suicídios no país preocupa. Segundo dados da OCDE, o Japão ocupa o 10º lugar entre os países com maior taxa de suicídio por 100 mil habitantes.

Além do ijime, há outros vocabulários que nomeiam situações atreladas a questões psicossociológicas dos japoneses. “Hikikomori” e “karoshi” são outros exemplos. O primeiro está relacionado a um isolamento severo feito por “vontade própria”: são pessoas que se afastam dos contatos sociais pelo receio de não se encaixarem nos padrões exigidos. Já o segundo conceito trata de algo interligado a essa dedicação tão extrema ao trabalho: “karoshi” é o termo utilizado para descrever especificamente a morte por excesso de trabalho.

Todas as 3 palavras transitam entre a infância, a adolescência e a vida adulta dos japoneses. Uma nação permeada por um desenvolvimento potente e tantos indicadores de bem-estar que ficam ligeiramente turvos diante das pressões autoimpostas e impostas uns aos outros. O Japão não se trata apenas da rigidez e nem apenas da tecnologia. Além da mistura entre ambos, há diversos outros aspectos que compõem o país asiático que, sem dúvidas, merece todos os elogios possíveis, assim como um olhar cuidadoso e apurado.