Iniciamos a Série MITRA no Rio com o texto de Bertille Paquet. Ao longo dos meses de dezembro de 2019 e janeiro de 2020, publicaremos uma série de depoimentos de alunos do Mestrado MITRA – Migrações Transnacionais da Universidade de Lille III que fizeram intercâmbio na Universidade Federal do Rio de Janeiro. As matérias contarão, entre outras coisas, de onde essas pessoas vêm, como era a visão que esses migrantes tinham do Brasil, por que escolheram vir para cá, como foram suas experiências no país e quais foram os temas de suas pesquisas. A produção é de João Paulo Rossini, mestrando associado ao Diaspotics/UFRJ.

Vamos ao texto!

 

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Eu sou francesa e conclui um mestrado sobre mediação intercultural e migrações internacionais na Universidade de Lille (França). Através da mobilidade acadêmica nas universidades parceiras durante os semestres 3 e 4, esse mestrado busca uma compreensão transnacional da questão migratória e uma aprendizagem prática das situações interculturais. Assim, vim passar um ano na UFRJ para terminar o meu mestrado e obter uma aprendizagem mais completa das questões migratórias. Achei que a situação migratória no Brasil, bem diferente da francesa, poderia me fazer aprender muito sobre as diferentes construções políticas das migrações. 

Em 2017 decidi me candidatar ao Master MITRA porque tinha muito interesse em aprender mais sobre a mediação intercultural, que eu já havia abordado superficialmente antes. Mas, no início do meu mestrado, comecei um trabalho voluntário na Cimade, uma associação que busca ajudar administrativamente pessoas sem documentação em seu processo de obtenção de refúgio, de autorização de residência, entre outros, e também linguisticamente, com aulas de francês. Nessa associação, testemunhei várias situações de hostilidade da administração francesa para pessoas indocumentadas que queriam se regularizar administrativamente. Comecei, então, a pesquisar sobre as relações de poder que existam nos “guichês da imigração” (segundo Alexis Spire) das administrações francesas entre o governo, os funcionários e os requerentes de título. 

 

A minha pesquisa

Queria aprofundar essa questão quando cheguei no Rio de Janeiro e estudei o caso dos consulados da França no Brasil. Como fala Paolo Cuttittat, vivemos num “mundo-fronteira”, onde as fronteiras se multiplicam espacialmente e se antecipam temporalmente. Assim, os serviços de visto dos Consulados (mesmo se um consulado não é juridicamente uma parte do território nacional dentro de um outro país) atuam como um deslocamento espacial da fronteira. Isso se dá porque o visto se tornou necessário para qualquer brasileiro que queira passar mais de três meses na França, e o Consulado tem uma enorme importância na realização (ou na obstrução) dos projetos migratórios das pessoas.

O meu trabalho buscou mostrar a situação prática resultado dessa fronteira seletiva nos Consulados e na Embaixada da França no Brasil, a partir do estudo de casos dos candidatos a um visto, segundo o seu perfil. Assim, tentei retranscrever as diversas experiências vividas pelos requerentes, tanto as práticas discricionárias no guichê do Consulado da França quanto experiências pessoais mais positivas. 

A minha observação nos Consulados da França parece confirmar que a fronteira seletiva francesa se externalizou de maneira elástica, pois ela existe entre o candidato e o Consulado, mas também entre os próprios candidatos. A política imigratória é vista numa lógica securitária e busca ordenar os migrantes “desejáveis” economicamente e os que apresentariam uma “ameaça” à integridade nacional (seja econômica, social ou cultural) e que têm uma grande probabilidade de ficar na França depois do prazo do visto. 

As estudantes que eu entrevistei e que foram para França estudar durante um ano ou mais passaram por um processo burocrático, mas bastante fácil. Elas obtiveram toda a informação necessária ao processo e não passaram por momentos de estresse intenso até a obtenção do visto. Por outro lado, Charel, um rapaz congolês que eu entrevistei no Rio de Janeiro, viveu uma experiência bem diferente no Consulado da França. Ele estava morando na cidade há seis anos e tinha um visto de residência no Brasil no momento em que solicitou um visto turístico para viajar de férias para a França, em dezembro de 2018. Charel também tinha um trabalho estável de eletricista e, segundo ele, estava claro que não tinha nenhum motivo para ficar irregular na França, sem documentos ou trabalho, já que os tinha aqui.

Ainda assim, o Consulado recusou o seu pedido de visto usando a desculpa de que “os seus motivos não estavam claros”. Nesse caso, é muito visível que não foi feita uma análise pessoal da sua situação, e o fato de Charel ser congolês provavelmente provou para os empregados do serviço consular que ele apresentava um “risco” muito elevado de ficar irregular na França.

Neste trabalho, também descobri a importância das redes sociais na realização dos projetos migratórios, em particular as redes online na busca de informações e conselhos, e também para contar as diversas experiências vividas durante o processo de pedido de visto. Por isso decidi usar uma metodologia complementar às minhas entrevistas. Analisei publicações e discussões de um grupo sobre vistos de Férias-Trabalho para França no Facebook, além de uma conversa no Whatsapp. Isso me ajudou a ter uma matéria prima que não estivesse influenciada pelas minhas questões de pesquisa. 

Por exemplo, uma mulher publicou no grupo de Facebook uma experiência discriminatória no serviço de visto durante a realização de uma entrevista no Consulado da França em São Paulo para obter um visto de Férias-trabalho: 

“só um desabafo que de tudo isso foi o que me deixou um pouco chateada, foi ser entrevistada pela senhora da esquerda em SP, tive que ouvir coisas do tipo: “garotas da sua idade não sabem o que querem da vida”. Resposta: mas eu sei muito bem o que quero da minha por isso estou aqui. “você sabe falar francês? Pq se não souber vai lavar pratos lá”. Resposta: sei sim, e não vejo problema nenhum em lavar pratos. “pq escolheu Paris? Paris é uma cidade como Curitiba e São Paulo”. Resposta: a senhora já foi pra França?? -sim, morei 10 anos lá. -E porque a senhora escolheu a França?? -eu fui muito nova. “você já pensou em ir pra Nova Zelândia, lá o visto é o mesmo” Resposta: não tenha nada lá que me interessa. “Seus documentos estão perfeitos, mas isso não significa que vai ser aprovada” – o não eu já tenho, estou em busca do sim. Isso foi no meu caso, a minha namorada não perguntaram nada pra ela, até pq ela foi com a moça da direita. Com algumas pessoas que conversei vi que ela tem algum problemas com as “garotas”. Em diminuir e tals. Não sei porque mas em fim.”

Neste caso, é claro que as perguntas da pessoa do guichê não são justificadas pelo visto, e que ela tenta dissuadir a requerente, ou desconcertá-la, insinuando que a brasileira deseja se manter na França mesmo após o vencimento do visto. Depois da entrevista em questão, o visto foi negado.

Em minha dissertação também tentei mostrar que, face a esta política de imigração restritiva e seletiva, os requerentes elaboram estratégias, mais ou menos fiáveis, para contornar as barreiras que lhes são impostas. Eles tentam superar a desinformação através da constituição de redes migratórias sólidas, cada vez mais moldadas pelas tecnologias de informação e comunicação. A minha observação online foi muito enriquecedora para a compreensão das diversas estratégias de obtenção de vistos e das outras maneiras de se chegar na França. 

Para concluir sobre esse trabalho, achei importante restituir as experiências vividas pelas pessoas requerentes de vistos para a França, para que elas não fossem vistas apenas como alvos passivos da política migratória governamental (como podem ser representadas em alguns trabalhos universitários), mas também como atores com projetos migratórios dinâmicos. 

 

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Bertille na Pedra Bonita, Rio de Janeiro. Arquivo pessoal.

 

A minha experiência no Brasil

Este trabalho foi ainda mais instrutivo, pois a diferença também foi bem grande entre as situações desses requerentes de visto, que eu entrevistei, e a minha situação como estudante francesa no Brasil, ou mesmo as experiências de outros franceses que conseguiram obter um visto Férias-Trabalho muito facilmente para vir ao Brasil. Por exemplo, para obter o meu visto estudante para o Brasil, passei uma manhã no Consulado Geral do Brasil em Paris e obtive o meu visto 10 dias depois, com documentos bastante fáceis de obter. Ao contrário, para os estudantes brasileiros que querem estudar na França, tem todo um processo de inscrição, pedido e aceitação da instituição francesa no website Campus France antes de começar o processo de visto. No final, o processo dura por volta de três meses.

A experiência no Rio de Janeiro foi muito diferente da minha vida na França, em vários níveis. Primeiro, descobri uma forma de ensino bem diferente do ensino francês. Aqui, a relação entre os professores e alunos é menos formal e, sobretudo, menos hierárquica. Acho que os professores dão mais espaço ao saber e às análises dos alunos, e essa forma de confiança é muito positiva para evoluir nos estudos universitários. Também achei a vida universitária aqui na UFRJ muito dinâmica, e os estudos decoloniais muito desenvolvidos enriqueceram a minha formação feita em Lille.

As relações interpessoais aqui no Rio de Janeiro também são muito diferentes do que eu conheço na França; elas me parecem mais plurais e espontâneas. Acho, também, que foi muito mais fácil chegar aqui sem falar a língua, para mim, do que é para a maioria das pessoas estrangeiras chegando na França. Acho que a França tem uma relação bem especial com a sua língua, bem protetora, e muitas pessoas esperam que você fale a língua para morar no país, enquanto não senti julgamento quando não falava português no início.

Fui muito bem acolhida, também por ser uma estudante francesa branca, e lidar com essa relação ao “estrangeiro” dos países europeus foi algo desafiador. Percebi que tinha uma admiração aos europeus bastante presente, apesar da história sangrenta da colonização e da escravidão, que é bem visível no país. Por essa “admiração” que eu não entendia, esse ano foi a primeira vez na minha vida em que eu senti que o meu corpo trazia uma violência simbólica tão forte e interiorizada.

A vida cotidiana no Rio de Janeiro foi também extremamente diferente da minha vida cotidiana em Rennes ou Lille. Passei um tempo muito maior fora e gostei muito disso, para ir às feiras, na praia, na floresta ou simplesmente comer na rua. Mas gostei sobretudo da vida cultural da cidade carioca e dos eventos abertos como as apresentações de samba, forró, MPB e funk. Esse tipo de festa livre na rua quase não existe na França.

Agora, com todas essas lembranças do Brasil, a tentação de voltar fica bem forte! Mas, no momento, queria trabalhar por um tempo em alguma associação de ajuda aos exilados no sul da França.

Bertille Paquet