O Rio de Janeiro pode ser considerado como espaço cosmopolita, local onde diferentes idiomas e dialetos são falados e pessoas se comunicam de forma não linear. A cidade é considerada como um espaço de redes de comunicação entre pessoas com diferentes fundos culturais, sociais e linguísticos. É um terreno privilegiado da diversidade, do estrangeiro e da negociação com o outro (local), nos espaços públicos e privados.
A cidade também pode ser compreendida a partir da força da mediação com o outro, no qual os vínculos são estabelecidos. Os afetos trocados são importantes para o desenvolvimento dos indivíduos com os laços de intimidade e reciprocidade para a integração e a adaptação no local de destino. O objetivo central deste trabalho [nota do editor: reflexões da dissertação de mestrado da autora] é refletir como o afeto promove o sentimento de pertencimento e interpretação de esquemas culturais entre pessoas de nacionalidades distintas.
Encontros interculturais são uma forma de construir um novo tecido social e afetivo, respeitando as diversas formas de conceber o mundo. Os casais binacionais são formados por indivíduos que têm valores diversos, hábitos culinários, religiosos e sociais diferentes. As negociações são feitas entre fronteiras, línguas, gerações, etnias, raças, tradições. A consciência em relação aos aspectos interculturais permite uma aproximação necessária para identificar traços subjetivos que interferem na adaptação e na integração ao novo espaço social e simbólico.
Helena [1], 42 anos, porto-riquenha, é casada com um brasileiro. Ela conheceu o marido nos Estados Unidos, na mesma academia em que dava aulas de yoga. O marido veio morar no Brasil porque teve um problema com o visto e ela veio acompanhá-lo. Ela acredita que conhecer a cultura brasileira é uma oportunidade para conhecer o marido. Ela disse que, no Brasil, assistir à manifestação cultural do futebol brasileiro para o estrangeiro é como usar “óculos novos”.
“Para mim estar aqui es una oportunidad enorme de aprender e de conhecer mais a ele, que por mais que ele me explicava…para mim tem sido uma experiência como digo em aula super cool. Pode non ser, mas sentir essa pasión e orgulho coletivo da nación brasileira en la Copa. Já vocês estão acostumbrados [acostumados], mas para uma pessoa com “óculos novos”, como o estrangeiro. É, como eu ver, geralmente, as pessoas não veem, porque esse amor e esse orgulho as pessoas não veem. E é lindo, outros países não têm isso. Porto Rico tem” (HELENA, março de 2019, grifo nosso). [2]

Para o sociólogo Alfred Schütz, a adaptação ao país de destino pode, no início, “ser ou parecer” estranha, mas será um processo contínuo de interpretação e traduções culturais. Schütz afirma existir grades que representam partes do conhecimento, que podem ser melhor compreendidas somente quando o estrangeiro é inserido na cultura de origem do parceiro ou parceira. O estrangeiro começa a ver a cena cultural da cidade com “óculos novos”, conforme foi definido pela entrevistada Helena.
O novo ambiente urbano pode traduzir as diversas descobertas e novas possibilidades. Como também, de certo modo, é possível transformar o Eu por meio da interação, com trocas e configurações entre o desterritorializado e territorializado (aquele que pertence ao local e aquele que não). Assim, um dos parceiros assimila os valores do outro ou de um e outro. As diferenças entre ambos são diluídas e as negociações ocorrem mais frequentemente.
A mudança para outra cultura representa uma transformação dos referenciais de pertencimento. Os afetos trocados auxiliam o desenvolvimento de competências individuais, como significam um modo de integração e acolhimento no país de destino.
O “entre lugar” cultural acontece no exercício diário de negociação, adaptação, estranhamento e interpretação. Viver é conceder-se aos outros. E os laços renovam o sentido da vida, como produção do “estar-junto, do comum” [3] e estabelecimento de vínculos. E é necessária uma empatia e reconhecimento sensível da experiência de alteridade. A relação de mutualidade é dinâmica, significa viver e estar presente.
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[1] Nome fictício
[2] A interlocutora mistura os dois idiomas. A escolha foi transcrever a entrevista na na forma original.
Referências:
GONÇALVES, C. Mulheres entre culturas: afeto e interculturalidade no contexto das migrações transnacionais (Dissertação de Mestrado). Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de Psicologia, Programa de Pós-graduação em Psicossociologia e Comunidades e Ecologia Social, Rio de Janeiro, 2020.
MAFFESOLI, M. Matrimonium: petit traité d’écosophie. Paris: CNRS, 2010.
[3] PAIVA, R. GABBAY, M. Sobre a Comunidade do Afeto: comunicação alternativa e comunidade no contexto atual. Parágrafo, v. 5, n., 1jan/jun. 2017.
SCHÜTZ, A. O estrangeiro. Um ensaio em Psicologia Social. Revista Espaço Acadêmico, n. 113, out. 2010.
SENNETT, R. Flesch and stone: the body and the city in Western civilization. London: Faber & Faber, 1994.
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Catarina Gonçalves
Mestre em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social pela UFRJ e membra do Diaspotics.